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domingo, 7 de julho de 2019

Da Califórnia de Lucia Cardoso - SAUDOSO SEGUNDO LUGAR


SAUDOSO SEGUNDO LUGAR

Pus-me, anteontem, a fazer contas à vida e tentei mesmo maquinar uma estimativa do tempo que me restaria por cá, mas ainda bem que não cheguei a qualquer conclusão. Isso a Deus pertence, costumamos dizer. É uma equação que não nos compete por estar fora do nosso controlo. Números há, no entanto, a que não podemos fugir. Acomodado já na casa dos sessenta, ao olhar para as minhas raízes imediatas, reparei que meus pais se ficaram pela dos oitenta e pique. O que, pensando bem, se lá conseguir chegar sem grandes avarias pelo caminho, já não será nada mau. Dá-me esperança ao mesmo tempo que me traz tristeza. Lembro-me bem de quando tinham a minha idade e isso sim, leva-me facilmente a concluir que, daqui para lá, tal como as forças, as contas serão de diminuir.

Fartei-me de somar e multiplicar. Estou na América vai para quarenta e um anos, trinta e sete dos quais a morar na mesma casa. Começou pequenina antes dos miúdos virem obrigar-nos a remodelá-la acrescentando-lhe outro piso para lhe redobrar o espaço. De princípio, via-se vazia. Agora está mais do que cheia. Tem sido três décadas e meia a acumular isto, aquilo e aqueloutro, por vezes, em desnecessário excesso. Creio que chegou a altura de começar a reduzir e limitar-me ao que preciso. A minha cara metade é que me tem andado a convencer, convencida pela delicada Marie Kondo, essa celebridade japonesa que tem feito um sucesso medonho com a sua luminosa ideia... – ... (if something doesn’t spark joy, let it go) “se uma coisa não te desperta alegria, desfaz-te dela”. Claro que se trata duma filosofia algo minimalista, contudo até faz sentido. Levou-me algum tempo a dar-lhe crédito.

Vivemos hoje cercados pelo consumismo. Compra-se em demasia e adquire-se ao desbarato, coisa praticamente impensável no tempo dos nossos avós. Eles bem que nos ensinaram a poupar. Detestavam o desperdício de tal forma que até o rotulavam de pecado. Imagine-se. Devido às múltiplas carências de então, deitar fora, à toa, era praticamente proibido. Quanto não se armazenava em nome da santa poupança ou da velhinha nostalgia? Faziam-nos ambas apegarmo-nos demasiado às coisas dando-lhes aquele valor sentimental que nos vai alimentando o vício de nos agarrarmos aos tarecos, bugigangas, velharias e até mesmo alguma daquela roupa que já deixou de nos servir. A senhora Kondo está cheia de razão – “...se não serve, está a mais...”

E assim me decidi por uma limpeza geral. A operação começou no barracão do quintal, entrou pela porta da garagem, meteu-se depois na cozinha e correu os quartos todos antes de subir ao sótão. Aí, mais parecia a feira da ladra aliada ao museu da saudade. Livros, discos, revistas, cadernos, sebentas, bolas, troféus, malas, placas e até uma viola já só com duas cordas que tinha trazido das ilhas e não me via tocar-lhe há poderes de anos. Toquei-lhe e uma nuvenzinha de pó soltou-se a lembrar-me que também me armei em artista nos meus tempos de rapaz. Adorava o palco e imaginem que ganhei mesmo um festival da canção. Não por ter grande voz, a cantiga é que era jeitosa. Ainda a sei de cor. Descaio-me, de quando em vez, a cantarolá-la recordando esse tempo lindo que me brindou igualmente no campo desportivo com ótimas recordações. Uma delas repousava ali empoeirada e meia descolorida na quietude do sótão. Pobre medalha, até fora de prata luzidia, agora cobria-a o zinabre. Mal e porcamente ainda nos deixava ler o que lhe haviam gravado há meio século – Corta-Mato – Prova dos 1.500 Metros – 2*lugar – 1969.

Só não fiquei em primeiro por culpa minha. A prova disputava-se na Mata da Doca, em Ponta Delgada. O saudoso padre Agostinho Tavares, o meu primeiro “professor de ginástica”, era o nosso treinador e tinha-nos ido mostrar o percurso na véspera, coisa que não aconteceu com alguns atletas concorrentes das outras escolas participantes. Éramos quatro a representar o Seminário-Colégio e, nos meus quase catorze anos de idade, eu tinha tanto de promissor como de ingénuo. Fora educado naquela clássica escola do são desportivismo – “mens sana in corpore sano” – que eliminava logo à partida o ganhar-se a qualquer custo, tão vulgar hoje em dia. Aproximava-se o fim da corrida que eu liderava seguido de perto por um rapazola com pulmão mais fresco do que o meu. Parecia desorientado quando me alcançou numa encruzilhada mal sinalizada da Mata antes de entrarmos na reta final. Ao contrário do padre Agostinho, o seu treinador não tinha tirado tempo antes para lhe indicar o caminho. “É por aqui ou por ali?”, perguntou-me ele confuso e com a língua de fora. Sem fôlego para falar, apontei-lhe o dedo para o devido lugar.

Meio século depois, ainda recordo bem o pronto elogio do simpático sacerdote, “agiste como um cavalheiro – procura sê-lo ao longo da vida e não te arrependerás.” Em vez de ter apontado ao meu direto competidor o caminho da vitória, podia muito bem ter-lhe trocado as voltas e pronto – a condecoração mais honrosa seria minha. Lembro-me de ter ficado meio tristonho na altura. Teria hoje motivo de sobra para me encher de vento. Talvez a medalha não se tivesse enchido de zinabre. Mas encheu-se e agora vou limpá-la bem limpa. Quero deixá-la a luzir. Traduz-me uma recordação que me traz alegria. “If it brings you joy...”, diria a senhora Kondo, “...keep it.” Não estou preparado para me desfazer dela.
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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