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terça-feira, 23 de julho de 2019

Do colaborador Dr. António Bulcão - A multa


A multa 

Guilhermina levantou-se bem cedo, como era seu costume. Lavou-se, vestiu-se, calçou-se, mordiscou uma côdea de pão, que lavou com duas bochechadas de café, e saiu apressadamente. Não podia atrasar-se, naquele dia havia missa de corpo presente ao fim da tarde, e a igreja tinha de estar a brilhar.

Há mais de quarenta anos que Guilhermina cuidava da igreja. Solteira, apenas com irmãs, sem profissão para além das lides domésticas, entregara-se de corpo e alma ao templo desde bem nova. E só ela e Deus sabiam o trabalho que dá. 

Há sempre uma ou outra mosca atrevida a deixar imprevista lágrima no imaculado rosto de Nossa Senhora das Dores ou uma nota fora de pauta na harpa de Santa Cecília. Passar um pano húmido nas imagens era coisa para duas horas pelo menos. Para que ficassem reluzentes à vista de qualquer devoto.

Depois havia os pingos no sobrado, por baixo das pias de água benta. Entre a fonte e as muitas testas a benzer ia sempre a distância suficiente para que nem todo o líquido chegasse inteiro e não se podia deixar acumular demasiada humidade na madeira, que podre acabaria por ficar, por mais sagrada fosse a origem.

Os vidros das janelas. Os bancos a livrar do pó. O chão a varrer e depois lavar. Todos os que conhecem agora Guilhermina terão casas onde cumprem estas tarefas com regularidade. Pois multipliquem isto por cem e terão uma ideia aproximada do drama da pobre senhora, que para nova já não vai. 

E isto sem falar das velas a substituir nos altares.

Mas Guilhermina adorava a igreja. Era, dizia com propriedade, a sua segunda casa. Talvez, bem vistas as coisas, a primeira, já que nela passava mais tempo que no lar com as irmãs.

Gostava menos da sacristia, desde que alguém lhe chamara, era ainda nova, rata da mesma. Mas também desse espaço adjacente tinha de cuidar. Manter as vestes sacerdotais bem passadas a ferro, ordenar as hóstias do sacrário suplente, manter em ordem as epístolas e evangelhos de cada dia. Uma canseira, meus amigos, uma canseira.

Tudo pronto. A igreja resplandecente para receber o finado, sua família e quem quisesse despedir-se pela última vez. Guilhermina deu uma última olhada à sua obra e dirigiu-se para a saída.

Euclides era o sacristão. Com tarefas bem mais simples. Sinos a tocar, ajuda ao padre durante a missa, coisas de pouca monta. Mas, naquele dia, estava atrasado e tinha de subir à torre para anunciar em rebates a missa para breve.
Por isso naquela tarde corria, com a velocidade que lhe permitia uma dúzia de crises de gota. E só viu Guilhermina quando já em cima dela. Impossível travar, o conta-quilómetros empeçado pela artrite. Bateu na pobre senhora a pelo menos cinco à hora e Guilhermina estatelou-se no adro com um ai bastante profundo.

O problema é que um polícia viu a queda e suou para o local, doido para lavrar um auto.

- O senhor está multado.

- Como multado? Foi um acidente, pelo amor de Deus! – refilou Euclides, ajudando Guilhermina a voltar à posição erecta. 

- Não me venha com desculpas, eu vi tudo e ainda sei interpretar a lei. Está multado em 250 euros, e tem sorte por eu estar bem-disposto hoje, senão comia por um montante maior que não o mínimo…

- Mas que tolice vem a ser esta, senhor guarda? Desde quando um acidente entre dois peões leva multa?

- Ah, o meu amigo ainda não sabe da nova lei… Pois fica desde já informado, para memória futura, que é absolutamente proibido deitar beatas ao chão.

António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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