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terça-feira, 2 de julho de 2019

Do colaborador Dr. António Bulcão - O sapo que queria ser homem


O sapo que queria ser homem

Era uma vez um sapo que queria ser homem. 

Não, não me canseis com perguntas para as quais não tenho resposta. Não faço a mínima ideia das razões que levavam este sapo a desejar ser outro ser que não o que era.

Grande deve ser o drama de uma mulher que nasce em corpo de homem, sonhando a vida inteira batons e rouges onde só mora espessa barba, alongando gestos e estendendo feminilidades onde apenas se estabelecem, por tradição, brusquidões, escarros lançados ao chão ou vozes vibrantes a dar ordens pela casa.

Como enorme deve revelar-se a tragédia de um homem que nasce em corpo de mulher, obrigado a quilos de vestidos e lingerie florida, quando se sentiria no céu com alvarozes e camisas de flanela abertas até ao terceiro botão, de modo a ficarem bem visíveis vastos caracóis no peito.

Será, talvez e mutatis mutandi, semelhante ao que sentirá o nosso sapo, quando alonga as membranas em saltos radicais, imaginando-se em posição erecta. Mas não podemos assegurar, e, nestas coisas como noutras, o rigor torna-se imperioso. 

Seja como for, não deve ser nada fácil um homem viver em corpo de sapo.
Comecemos pela alimentação. É dos manuais primários sobre a vida selvagem que o sapo come insectos, larvas, vermes, caracóis, um ou outro murganho mais distraído em dias de festa. Ora imagine-se o leitor a mamar com esta ementa, em vez de filet mignon na pedra, postas de cherne no forno ou camarões grelhados com molho de manteiga.

Depois temos a vida social. Admitindo que possa haver alguns encantos nuns saltos de nenúfar em nenúfar ou numas serenatas coaxadas ao luar, isto repetido a vida toda deve ser uma grande seca. O nosso sapo ansiava por bailes, viagens, aventuras.

Por fim, o diabo do sapo sentia-se gozado, coisa que ninguém gosta.

Começou por uma canção infantil. Este batráquio vivia numa lagoa de uma ilha no meio do Atlântico, muito procurada por turistas e afins. Pois um dia, pelas janelas abertas de um táxi transportador das ditas criaturas, começou a ouvir uma canção que dizia qualquer coisa como: “eu vi um sapo, com um guardanapo, tudo comeu, nada ofereceu”. O animal ficou furioso. Já não lhe bastava a sua triste sina, ainda tinha de andar por creches e colégios em bocas desdentadas de crianças, desafinando tamanha tolice.

Mas perdeu completamente o juízo quando soube que a sua espécie fora escolhida para endereço electrónico. Agora o gozo já era global. Até entendia o espírito da coisa, imaginava mensagens aos saltos de email em email. Mas odiava a expressão arroba sapo. Que diabo, há outros animais saltadores. Porque não @gafanhoto, por exemplo?

Tinha de arranjar maneira de se transformar em homem, o mais depressa possível, para acabar de uma vez por todas com aqueles vexames.

Começou por tentar uma hibernação mais profunda. Como todos sabemos, o sapo é animal de sangue frio. Por outras palavras, o seu organismo não é capaz de gerar calor corporal. Daí se trancarem ao sol como doidos. Tá visto que o bicho começa a sofrer quando o frio ataca. O sangue começa a ficar grosso, o ritmo cardíaco abranda e, se o sapo não se põe a pau, era uma vez o mesmo.

É por isso que se enterram na lama, para ficarem mais quentinhos e esperarem a primavera em sossego. O nosso sapo pensou, então, que se se enterrasse mais fundo uma pisca, poderia originar metamorfoses mágicas. Bem pensou melhor fez, toca a cavar mais do que era costume.

Mas uma coisa é o corpo outra é o pensamento. Por mais fundo que se enterrasse, o sapo não conseguia soltar-se do sonho de ser homem, permanecia acordado e assim não havia hibernação que lhe valesse. Sapo continuava.

Até ao dia em que, já se preparando para desistir e render-se à natureza, veio-lhe ao miolo sapal uma peregrina ideia. Se conseguisse ser beijado por uma princesa, transformar-se-ia num homem. Não apenas num homem, mas num príncipe, alto e espadaúdo, esbelto e apetecível.

Toca então de escrever “beija-me princesa” num papel. Traduzido em várias línguas o lancinante desejo, espalhados cartazes com os dizeres nas bordas da lagoa, esteve anos à espera de o seu pedido ser satisfeito. Sem sorte nenhuma. Não haveria uma única princesa nas hordas de turistas que se deliciavam em ós de espanto todos os dias por aquelas bandas.

Até que, numa manhã de primavera, já se plantara o sapo no seu posto ao primeiro raio de sol, apareceu uma mulher, a puxar para o forte, que se pareceu interessar pelo apelo do bicho. Rude nos gestos, algo cabeluda debaixo dos braços, tudo indicava ser proveniente de uma localidade da ilha que tinha peixe no nome. Longe, portanto, de sequer se parecer com uma princesa…

Mas a verdade é que aproximou lentamente a beiça da carinha do sapo e depositou suave chocho na boca do dito. Ai o caraças, e não é que resultou? Claro que o antes sapo fugiu logo a sete pés, por entre bardos de hortênsias, não fosse a hercúlea dama ter mais ideias. Mas era já um homem que corria, não um viscoso braquetápulos.

Todo o supra vertido poderá ser do conhecimento, não direi público, mas pelo menos de alguns estudiosos e eruditos. Este homem, outrora sapo, também se dedicou à política. E também foi longe. Não direi quão longe, porque ele ainda anda por aí e eu não quero roubar aos leitores o prazer de tentarem descobrir quem é.

Deixo apenas duas pistas, admitindo que nem seriam necessárias para os mais sagazes. 

A primeira é o timbre da voz, não se tendo o homem conseguido livrar completamente de uma ambiência nasalada, mais próxima do coaxar que da oratória límpida.

A segunda é a boca. Reparem bem os que quiserem estar atentos, e depois digam-me lá se aquilo não é boca de sapo… 

António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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