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sábado, 13 de julho de 2019

Do jornalista Souto Gonçalves - 4 - Dei comigo a pensar...


... nas corridas de bicicleta da Praça da República

Quem tem menos idade do que eu dificilmente imaginará como é que se passaria o tempo fora do computador ou sem o telemóvel na mão. Há uma imagem, publicada no Facebook, que com ironia mas assertivamente mostra bem o domínio das novas tecnologias sobre o comportamento das pessoas nos dias de hoje: uma família está reunida à hora da refeição, pronta para o repasto, mesa posta, pratos, copos, talheres e, ao lado de um destes, o lugar para o telemóvel!

Quando a televisão chegou aos Açores, sensivelmente a meio da década de 1970 e as pessoas deixaram de andar na rua, a juventude ainda lia «Os Cinco» e «Os Sete» estimulando a imaginação em aventuras rocambolescas; folheava as histórias aos quadradinhos do Tio Patinhas e quejandos ou colocava-se na pele de algum gringo que viesse nos livros de «cowboyadas» a preto e branco (exceto a capa) e que o Terra, meu colega dos bancos da escola do professor Rodrigues («Bicho»), à Rua Advogado Graça e hoje desaparecida, era capaz de reproduzir no caderno dos ditados com tal arte que se fosse atualmente poderia fazer carreira como ilustrador numa qualquer empresa de prestígio.

Brinquei até à idade de já não dever fazê-lo com Legos. Ainda tenho a caixa com as peças. No verão as férias grandes eram em Castelo Branco, onde hoje moro. Não me recordo de tempo mais bem passado do que esse! Os meus amigos de Castelo Branco também não queriam outra coisa, pois a nossa (eu, meu irmão e minha mãe ao encontro de minha avó sorridente de braços abertos à nossa espera) chegada significava a chegada da caixa dos Legos. E eram tardes à volta destas peças de plástico. Eu tentava construir as casas conforme as instruções, mas nunca saía nada de extraordinário. Os meus amigos de Castelo Branco, experimentados na vida do campo e habituados a desenrascarem-se, faziam sempre construções fora da norma que me deixavam boquiaberto e frustrado por não consegui-lo.

O resto do tempo, que era muito, preenchia-mo-lo a jogar à bola no caminho (não passava carros), a ir dar água às vacas, a andar a cavalo e a correr de bicicleta. Castelo Branco, que está no meu coração, deu-me uma infância que nunca mais esquecerei. Algumas histórias hei-de trazer aqui.

Quem tem menos idade do que eu dificilmente imaginará como é que se passaria o tempo fora do computador, sem o telemóvel na mão e sem televisão.
Após os primeiros e doces odores da primavera que entravam pelo saguão da nossa casa da Rua Serpa Pinto, enviados pelas plantas desabrochando em frente, a bicicleta (uma Órbita verde e branca adquirida no Costa & Martins), repartida ao cronómetro por mim e meu irmão, atravessava o caminho para uma temporada em que percorreria centenas de quilómetros entre o mercado e os Bombeiros, nas «ciclovias» da Praça da República.

No pico do verão, à tardinha, um casal novo sentava-se invariavelmente num banco ao pé do coreto, a senhora a fazer croché e o homem simplesmente matando o tempo. Para o lado do Chico das Bicicletas o movimento habitual. A D. Maria Saraiva e outras senhoras apareciam depois do jantar. Nos Bombeiros um vai-vem. Quando o ajudante João Porto orientava exercícios de escadas a atração estava garantida. Um pouco mais longe, os brados do «Bigodes» junto aos carros de praça, no Largo do Bispo, ouviam-se com nitidez!

Juntavam-se diariamente 20 ou 30 bicicletas! A prova rainha era 20 voltas à Praça da República. Depois o «qui qui já», o «31» e algumas negociatas...

... foi numa tarde destas que consegui a titularidade numa das equipas de futebol que se defrontavam no intervalo da manhã na escola do professor Rodrigues. O «capitão» Godinho ofereceu-me esse (imerecido) lugar a troco de uma volta de bicicleta! Acabei por não entrar em campo, por opção própria, ante o mais que provável fracasso que se desenhava em face das estrelas que pontificavam nas quatro linhas.

Na «pista» da Praça de República, enquanto a televisão não chegou, continuaram os despiques velocipédicos, as brincadeiras, a amizade e o enlevo com que os mais velhos, nos bonitos bancos encarnados do jardim, presenciavam a algazarra. Ah! Ía-me esquecendo de dizer que o Victor Machado tinha a bicicleta mais cobiçada, em forma de bicicleta de corridas mas em ponto pequeno. Montá-la fazia sentirmo-nos um Joaquim Agostinho. E o Victor proporcionou esse prazer a muitos!

Entretanto, meu pai e o senhor Joaquim Furtado Cardoso começaram a encontrar-se em nossa casa para uma coisa que nunca os vira fazer: sentavam-se na cozinha a ouvir rádio. Mais tarde percebi que escutavam notícias sobre o 25 de Abril e tudo o que sucedeu depois. Curiosamente, mantendo a amizade e parte do negócio dos respetivos talhos em comum, vieram a seguir partidos diferentes. Após isto começou-se a andar menos de bicicleta na Praça da República. Da televisão aos telemóveis foi um ápice! 
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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