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sábado, 3 de agosto de 2019

Do jornalista Souto Gonçalves - 23 -- DEI COMIGO A PENSAR...


23 -- DEI COMIGO A PENSAR...

... no Rover

Naquele tempo em que à noite se contavam contos (agora não é preciso pois os computadores e os telemóveis ocupam miúdos e graúdos) minha mãe falava-me muito da sua infância.

Baseado no que ela me contava hoje vou falar de cães.

Por causa dessas histórias sempre gostei de ter um cão, mas meu pai nunca deixou. Ele tinha tido uma cadelinha, que morreu já não sei porquê e ficou com um desgosto. Então dizia-me que não queria mais cães em casa porque quando desaparecessem seria um drama.

Acho que era por causa disso que ele sempre se mostrou contrário a que tivéssemos um cão, mas talvez também porque sabia que ter um cão dá trabalho e de certa forma prende-nos, pois é preciso alimentá-lo, estar atento às suas necessidades, ensiná-lo, etc.

Portanto, histórias de cães não era com meu pai. Já minha mãe contou-me algumas.

Meu ti José Souto, que até ir para a América fazia vida de lavrador, cedo começou a trabalhar no campo, em Castelo Branco, ainda em casa do pai, meu avô.

Naquele tempo o lavrador e o cão eram inseparáveis. Talvez não houvesse casa no nosso meio rural que não tivesse um ou mais cães. A relação do cão com as pessoas era muito íntima, pois o animal percorria todos os passos na vida diária de quem trabalhava nas terras.

Por isso, meu tio José ganhou uma intimidade grande com o seu Paquito.

Certa vez foi passar uns dias à Manhenha, na Piedade do Pico, onde minha avó nasceu. Deixou as botas do trabalho na cozinha, debaixo do lava-mãos de madeira, logo à entrada da porta – como eu me lembro dessa peça de mobiliário, que tinha um jarro com água por baixo e um cubo de sabão azul junto à bacia de esmalte, azul mosqueado. Por cima, a atravessar, a toalha. Minha avó deitava água para eu brincar com uns bonecos de plástico que vinham nos pacotes de «Extra», um dos primeiros detergentes para lavar a roupa que apareceram por aqui.

Claro que isto foi muito tempo depois do Paquito, que eu não conheci.

Voltando ao assunto: o cão, perante a ausência de meu tio, deitou-se junto às botas dele e nunca mais de lá saiu até ao seu regresso. Nesse dia, já à noitinha, quando o dono abriu a porta de entrada, o Paquito soltou um latido tão forte que apagou a chama da luz de petróleo que estava em cima da mesa e cheio de alegria revirou todos os bancos da cozinha!

Minha mãe embevecia-se era com as recordações do Rover…

Durante a Feira Agrícola Açores 2019 passei pela AFAMA (Associação Faialense dos Amigos dos Animais) e vi lá um cachorro com as cores do Rover. Veio para minha casa!

O Rover da infância de minha mãe, que já o conheceu adulto, tinha uma predileção por meu avô; ou meu avô por ele, melhor dizendo. Iam os dois à caça. Era um cão de porte grande e altivo, cinzento-escuro, com malhas brancas.

Era um guarda, um rei. Depois de minha mãe nascer ninguém se podia aproximar da cadeirinha onde minha avó a deitava quando fazia a lida da cozinha. O Rover não deixava. Só se afastava do berço por ordem dos donos, mas retirava-se contrariado.

Já grandinha, minha mãe ia visitar ao Pedregulho, na Feteira, a sua madrinha e prima, Rosa Caldeira, filha de um irmão de minha avó que cedo viuvou na Piedade do Pico.

A «prima Rosinha», como a conheci, foi, na prática, a primeira filha do casal Souto, cujos dois filhos nasceram tarde, tendo vindo para o Faial porque o pai não tinha possibilidades de vencer as dificuldades desse tempo.

Minha mãe nasceu e a Rosa ajudou muito a criá-la. Eram íntimas, amigas, como irmãs.

Chegou a ocasião do Crisma e minha mãe escolheu-a para madrinha. Depois teve imensa dificuldade em passar a tratá-la por madrinha, pois antes eram irmãs na prática. Porém, tinha que ser assim na altura e a Rosa passou a ser «minha madrinha» na boca de minha mãe, que contava isto sorrindo.

Depois da Rosa casar e passar a viver no Pedregulho, minha mãe visitava-a frequentemente. O Rover ia com ela e levava na boca um cesto com coisas que minha avó mandava para a sobrinha-filha.

Mas havia um problema: sempre que aparecia um cão o Rover pousava o cesto, corria atrás dele para uma escaramuça e voltava a pegar no cesto. Minha mãe arreliava-se com isto e até tinha medo às vezes.

Uns anos antes minha avó ainda ia lavar roupa para a ribeira. A Rosa preparava o farnel e à hora do almoço chamava o Rover e mandava-o levar o cesto da comida. O cão chegava à ribeira, pousava o cesto em cima de uma pedra e esperava. Minha avó fazia-se despercebida e então ele ia junto dela e batia-lhe com uma pata no ombro para chamá-la à atenção.

Em casa, já com a pia de lavar, acontecia por vezes que o sabão escorregava e caía no chão. Para experimentar o Rover, minha avó ordenava-lhe que fosse buscar o sabão. Ele resistia e minha avó insistia. Até que completamente chateado pegava com a boca semiaberta no sabão e trazia-o de volta.

Só faltava falar, era assim que minha mãe se referia a esse cão, um verdadeiro membro da família.
Com a idade o Rover começou a matar as galinhas dos vizinhos e a situação tornou-se insustentável. Meu avô encontrou uma pessoa que o quis levar para sua casa e despediram-se.

Fez-se uma espécie de luto em casa de meus avós, mas meu avô era um homem determinado e a decisão estava tomada, sem apelo nem agravo, por muito que custasse.

O tempo passou.

Certo dia meu avô Manuel Silveira do Souto Júnior foi à cidade. Tratou das suas coisas e quando se preparava para regressar a casa, passando pela Pastelaria Ideal, viu, do lado de fora, um cão deitado no ladrilho. Muito magro e fraco, com aspeto de abandono.

Deitou a cabeça à porta da Pastelaria e viu a pessoa a quem tinha dado o Rover. Interrogou-o sobre o estado do animal e a resposta foi que era um cão muito grande, que comia muito e dava uma enorme despesa e não havia solução.

Meu avô estava condoído. Perguntou se podia levar o cão de volta e a resposta não se fez esperar: é um favor que me faz!

Decisão tomada. Meu avô encara o cão, ainda a alguma distância, dá um assobio e ele ergue-se fitando-o e agitando a cauda.

Chamou-o e disse: vamos para casa!

O carrão do Malhado (Manuel do Calço, de quem já falei aqui) passava para cima daí a instantes. Meu avô saltou para dentro e o Rover seguiu-o, a pé, até Castelo Branco.
Não terá durado muito mais anos, pois já era velho e estava mal tratado, mas não conheço mais da história do Rover, pois minha mãe evitava falar disso, provavelmente para não se lembrar dessa separação definitiva.

Souto Gonçalves

Publicado no jornal Incentivo, na sexta-feira, 2 de agosto de 2019
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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