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quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Do poeta, escritor, jornalista, Luís Fernando Veríssimo - COMPENSAÇÕES


COMPENSAÇÕES

Sarampo, caxumba e catapora podiam matar se mal curadas. Engolir chiclete era perigoso porque o chiclete engolido colava nas tripas. Fazer careta era perigoso porque se batesse um vento você ficaria com o rosto deformado pelo resto da vida. Pés descalços em ladrilho: pneumonia. Banho depois de comer: congestão. Melancia com leite: morte certa.

Depois vinham outros perigos e outras falhas de caráter e comportamento. Desatenção na escola, notas baixas: você era irremediavelmente burro e não tinha nenhum futuro. A adolescência era uma zona de horrores na qual você dificilmente sobreviveria se não tomasse precauções. Sexo, melhor evitá-lo. Histórias terríveis de camisinhas furadas levando a gravidezes indesejadas e ruína. Maus amigos, más influências, drogas. Ruína moral e física. Nenhum futuro.

Mas havia o grande amor. Ou os grandes amores. As que deixavam até o meio da coxa, as que espantavam a sua mão como um mosquito, as que diziam “Gosto de ti como um ermão”, mas só não deixavam dentro. No caso de transgressão do paralelo 38, que dividia a menina como as duas partes da Coreia em guerra na época, o Norte e, meu Deus, o Sul, imagino que soariam alarmes e haveria até o perigo de intervenção americana.

E havia outras compensações para os riscos de atravessar a infância e a adolescência pisando de precaução em precaução, como nas pedras de uma correnteza mortal. O orgulho de um pião bem lançado, por exemplo. O prazer de abrir um envelope e dar com a figurinha rara que faltava no seu álbum. O volume voluptuoso de uma bola de gude daquelas boas entre os dedos. A primeira bola de futebol, de couro, oficial, número 5, que você ganhou e hesitava em chutar para não arranhar.

E os cheiros da infância. Terra úmida. Caderno novo. Vick Vaporub! Você embaixo das cobertas, ouvindo o barulho da chuva lá fora, se sentindo seguro e, definitivamente, com algum futuro pela frente.

Agora, se você for um homem brasileiro em razoável estado de funcionamento, vai concordar comigo que nada compensava as agruras da vida, nem acordar com febre e não precisar ir à aula, nem fazer xixi em piscina, como passe de calcanhar que dava certo.
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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