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segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Do jornalista João Rocha - Abstenção explicada no café


Abstenção explicada no café

 Publicado por João Rocha

Júlio Ramos, de 51 anos, sempre trabalhou no ramo dos seguros. José Vicente, a menos de um mês de completar 50 primaveras, pouco ou nada fez ao longo da vida porque nasceu em berço de ouro.
Fatal como o destino, encontram-se por volta das 18 horas (Júlio depois do trabalho, José após uma boa soneca) num conhecido café angrense.
A linha existencial tanto os aproxima como os distancia. Júlio é casado com a irmã mais nova de José. O laço familiar, todavia, estremece pelas constantes divergências opinativas e de simpatias.
Júlio é perfeitamente desorientado em termos políticos, tendo já votado praticamente em todos os partidos.
José é monárquico convicto em nome de uma prima velhinha que assume ter sangue azul – e até é do Benfica, como toda a família aliás.
Por falar em bola, Júlio é fanático pelo Sporting, enquanto José apoia os encarnados – “Credo, cruzes canhoto, nem admito que façam analogias com a política”, adverte quando os amigos estão para enriçar mais um bocado.
A última discussão, entre os dois, versou sobre a elevada abstenção nas últimas legislativas nacionais nos Açores.
“Bem faço eu que não dou de barato o meu voto a nenhum partido. Gosto de votar de olhos fechados para não me pesar a consciência” – abriu as hostilidades Júlio, que já tinha virado três cervejas de rajada ainda antes da chegada de José, um pouco atrasado por dificuldades no estacionamento.
José olhou de soslaio para o rabo da funcionária do café, pediu um gin tónico e rumou aos lavabos para fazer chichi.
Verteu águas, limpou as mãos com um toalhete que traz sempre de casa e disse de uma forma muito séria a Júlio: “as pessoas não votam nos políticos porque querem um Rei”.
Júlio engasgou-se um pouco com a cerveja (quando acabava a quarta) e não foi meigo nas palavras: “José, nasceste com o cú virado para a lua e nem sabes o que é a vida”.
O simpatizante monárquico ripostou de imediato: “Júlio, não tens sensibilidade política. As tuas ideias esvaziam-se como as cervejas que bebes”.
“Tu és mas é parvo. Nada é melhor do que a democracia. E se a abstenção concorrer às eleições dá uma cabazada aos partidos todos”, contra-atacou Júlio em defesa da honra, sem antes pedir nova cerveja.
“Burro. A abstenção não é um partido. Representa um vasto número de cidadãos à espera da queda do sistema democrático”, ripostou José no habitual tom calmo de voz.
Júlio dá um soco no balcão e as cascas do tremoço voam em direção ao casaco do José, obrigado a nova ida à casa de banho e a recorrer ao toalhete caseiro, oferta da extremosa mãe.
José, depois de se desembaraçar das tarefas higiénicas, volta ao jogo das palavras: “Júlio, não tens mesmo emenda. Vou deixar de falar contigo”.
Júlio cai em si (devia mais de 100 euros ao cunhado) e pede desculpa a José.
“Pelo amor da tua irmã, perdoa-me outra vez”, recorre ao sentimentalismo.
´”Não há azar cunhado. Mas da próxima vez tem mais juízo” – adverte José, que paga todas as bebidas (oito cervejas mais o gin) e deixa uma gorjeta nobre à moça do café, acompanhada por um piscar de olho.
Júlio vira-se para o cliente do lado (trabalhador numa agência funerária) e enfatiza elogios em relação a José: “não é por ser da minha família, mas aquele homem é um mestre em política. Ainda vai chegar a Rei e transformar a malta da abstenção em príncipes”.
O senhor cangalheiro sorri, mas não responde. Por seu turno, Júlio limita-se a pedir mais uma cerveja “para a viagem”.

joaorochagenio@hotmail.com

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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