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domingo, 15 de março de 2020

Da Califórnia de João bendito - A peste e o coronavírus


A PESTE E O CORONAVÍRUS

Esta história já tem mais de cem anos.
A Ilha Terceira e quase todas as outras ilhas dos Açores não conseguiram fugir à grande epidemia de gripe que se espalhou por todo o mundo, ainda nem estava concluída a Primeira Grande Guerra. Escapou a ilha de Santa Maria onde, parece, não se registaram casos mortais.
A Gripe Espanhola, como ficou conhecida, até nem teve origem em território de Espanha. Os primeiros doentes foram detetados em Fort Riley, no estado americano de Kansas, sendo depois espalhada por soldados ianques nos campos de batalha da Europa.
Como fogo que pega em palha seca, a gripe atingiu proporções terríveis. No fim do ano de 1918 já metade da população mundial estava infetada, resultando na morte de pelo menos 40 milhões de pessoas.
Portugal continental e os Açores também não ficaram imunes, mais de 120.000 pessoas morreram, entre as quais até os videntes de Fátima, Jacinta e Francisco Marto.
Nos Açores a epidemia entrou através do porto de Ponta Delgada, trazida pelas tripulações de barcos de guerra que ali ancoravam. E tomou tais proporções que até os jornais da época noticiavam que já não havia gente disponível para construir caixões ou coveiros para enterrar os mortos.
No seio da minha família esta terrível doença deixou marcas profundas. Desde criança que me lembro de meu pai contar histórias relacionadas com “a peste”, não que ele se lembrasse diretamente do que se passou nesse tempo porque era ainda criança, mas porque a gripe espanhola levou-lhe a mãe que ele praticamente nem conheceu.
A história de Felismina Augusta Alves, a minha avó paterna, já tinha tido antecedentes sinuosos e complicados. Era filha de Manuel Machado Alves, o Ti Machado do Raminho, carroceiro de profissão e cantador ao desafio nas horas vagas. Não era dos mais afamados da sua época, mas tinha gosto em botar umas cantigas. Foi mais tarde guarda do matadouro municipal e veio a acabar os seus dias a vender favas e milho torrado na Praça Velha. A parte sinuosa que eu referia na vida destes meus antepassados é a que diz respeito à mãe de Felismina Augusta. Diz-se que fora recolhida na Casa da Roda e que teria sido filha ilegítima do então Comandante do Castelo de São João Batista. Para melhor esclarecer quem nunca ouviu falar, a Casa da Roda era o lugar, ali mesmo sobranceiro à baía de Angra, onde as mães solteiras ou alguma família com poucas posses financeiras iam depositar, em regime de anonimato, os filhos recém-nascidos. A criança, deixada numa janela rotativa que a levava para o interior da casa, era então cuidada e depois entregue para adopção.


Por altura do início da guerra, Felismina Augusta casou com o jovem José Machado Bendito e desta união nasceu o meu pai, em Dezembro de 1916. Contudo, passados dois anos e mesmo no auge da epidemia de “peste”, como então se dizia, a jovem mãe foi acometida pela gripe. Nesse tempo, para evitar maior propagação da doença, os mortos eram imediatamente enterrados, sem que se atendesse que um dos sintomas desta enfermidade era o causar uma espécie de coma ou morte aparente. Não foi caso único, segundo me contava meu pai, sempre com a voz cortada pela saudade e pela tristeza de não ter conhecido a mãe. E mais triste ficava quando nos relatava o pormenor mais macabro. Na altura de remover as ossadas, como era costume anos depois do funeral, constatou-se que Felismina Augusta teria sido enterrada ainda viva, o seu esqueleto estava todo torcido e de barriga para baixo.
......
Deixemo-nos de coisas tristes e falemos de ...coisas talvez ainda mais tristes. Os parágrafos que escrevi acima faziam parte da crónica “A PESTE E O ÉBOLA”, publicada pelos jornais comunitários em Outubro de 2014, já lá vão cinco anos. Depois desses parágrafos em que descrevia a angustiosa história da minha avó paterna Felismina Augusta, eu escrevi outros tantos a falar na terrível epidemia que, nessa altura, se espalhava pelos países africanos mas, felizmente, foi controlada com a ajuda de agências internacionais e de governos de países desenvolvidos que, numa resposta pronta e bem coordenada, conseguiram pôr mão na situação.
O vírus do Ébola não desapareceu, esses canalhinhas nunca desaparecem completamente, são maus de cabelo. Conseguem modificar as suas estruturas, tomar outras formas e resistirem às vacinas, de modo a atingirem novas vítimas e tirarem o juízo aos dedicados especialistas que os estudam. Deve andar adormecido pelas savanas africanas, à espera de algum descuidado que se veja infetado e, depois, inconscientemente, propaga a doença e causa mais uma onda de preocupações pelo Mundo todo.
Estas aparições de vírus, sejam novos ou velhos com caras novas, já são recorrentes. Este que agora nos apoquenta, o COVID-19 ou coronavírus, parece que está disposto a causar um pé-de-vento dos grandes. Com a capacidade de se propagar rapidamente, já está a ultrapassar fronteiras e a meter-se onde não é chamado. Apanhou de surpresa as agências que se dão ao cuidado de estudar estas epidemias e que não têm, ainda, a capacidade de lhe dar uma reposta adequada. Vamos ter que esperar meses para que se consiga criar uma vacina eficaz e, pelo menos nos EUA, há uma falta de test kits que não se compreende. A Administração Trump tem sido criticada por ter desmantelado, logo quando tomou conta do poder, algumas das agências e instituições que foram criadas pela administração anterior e que eram o primeiro grau de defesa contra as epidemias. E, de uma maneira mais que descarada, tem cortado os subsídios e apoios financeiros a tudo o que diz respeito a diferentes formas de estudos científicos e proteção do ambiente.
Contudo, quero dar o benefício da dúvida ao Governo americano. Espero que consigam pôr de parte os aspetos políticos e se concentrem na defesa da saúde pública; que não seja verdadeira a crítica de que o presidente esteja mais preocupado com os prejuízos da Bolsa de Valores do que proteger a saúde dos americanos; que tenhamos a consciências de que tanto o senhor Trump como o seu filho, espalham uma asneira quando acusam os adversários Democratas de quererem que esta epidemia se propague e seja a causa de ele perder as próximas eleições... só mesmo uma pessoa mesquinha poderá afirmar tal coisa. Portanto, e antes que seja tarde de mais, eu gostaria de ver os responsáveis tomarem decisões apropriadas para darem aos americanos os meios de defesa inerentes a uma resposta rápida e eficiente. Sobretudo, espero que o Governo americano se preocupe em manter as pessoas informadas – para evitar situações de pânico generalizado - e não corte a voz e os meios de trabalho aos cientistas que sabem do que falam e aquilo que fazem.
Os tempos são outros, as ciências médicas evoluíram muito desde os dias em que a Gripe Espanhola semeou o caos na minha e em muitas outras famílias. Estou em crer que este não será mais do que um susto, e que, juntos, possamos debelar esta crise. Sem politiquices mas com seriedade e responsabilidade.
Lincoln, Califórnia, 7 de Março, 2020
João Bendito

PS: Esta crónica partiu para os jornais onde regularmente as publico sem este “PS”. Escrevo-o alguns dias depois de ter completado o texto acima. Agora, com mais alguma informação e com muita mais preocupação, estou a chegar à conclusão que o meu otimismo em dar o benefício da dúvida à administração americana poderá ter sido uma vã esperança.
A situação está mesmo a tornar-se complicada, não só na América mas em todo o Mundo. Aumentam os casos de infeções e o número de mortes; o Mercado de Ações anda aos trambolhões e o presidente e seus ajudantes dão uma no cravo e outra na ferradura. Mesmo hoje (11 de Março), depois de uma comunicação à nação em que se quis mostrar muito preocupado, o DDT contradizia muitas das afirmações que fez mesmo a semana passada, chegando ao ponto de representantes da Casa Branca, horas depois do discurso, virem afirmar que ele «had misspoken»... não era bem aquilo que ele deveria ter dito!
Eu não queria estar na pele dos governantes. Mas, se se candidataram, sejam Republicanos ou Democratas, têm que esperar resolver situações como estas. O que se lhes pede é que sejam corajosos, decisivos e inteligentes. E, acima de tudo, honestos. Como escrevi acima, não escondam nada, mantenham a população bem informada e usem os melhores especialistas e os melhores dados científicos para os ajudarem a combater esta pandemia. Por outro lado, nós, os que estamos deste lado das decisões políticas, temos que procurar a frieza da razão em tudo o que fazemos. Não podemos pensar que estamos fora de perigo, mas não devemos entrar em pânico e andar em corridas de açabarcamento de produtos de higiene e de géneros alimentícios.
Nem quero pensar que tal nos venha a acontecer. Nem que estes “são os sinais do fim do Mundo”, como me dizia uma pessoa de quem eu gostava muito, mas a quem a sua religiosidade absurda não lhe permitia ver as coisas de outro modo. Ou como uma vez me disse um outro amigo... “espera até haver falta de água, os americanos matar-se-ão uns aos outros por causa de um galão do precioso líquido”. O pior é que agora quase que o fazem nas disputas por uns míseros rolos de papel higiénico!
Espero e desejo o melhor para todos os meus amigos e respetivas famílias.
Haja Saúde!  (nunca escrevi esta frase com tanta esperança e seriedade!)
12 de Março, 2020.
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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