TIXA”, A LAGARTIXA
O pequeno quintal da minha casa às vezes surpreende-me com a presença de animais que por aqui passam.
Não vivo numa zona rural, mas o facto de ficar mesmo ao lado de uma ribeira, permite-me observar o movimento de várias espécies. Pelos ares passam patos bravos, os chamados Canadian Geese, quase sempre em grandes grupos e a fazerem uma estridente cantoria com os seus gritos roucos. De manhã, deslocam-se de Oeste para Este, numa perfeita formação em “V”, quem sabe à procura de outros lagos; à tarde, vêm em sentido contrário e, como os lugares onde se reúnem para passarem a noite ficam mesmo aqui pertinho, sobrevoam o meu quintal em voos quase rasantes. Encontro-os também, quando faço as minhas caminhadas matinais, ao longo das margens da ribeira e dos lagos, nos trilos que a cidade construiu para uso dos seus habitantes. Os cães dos meus vizinhos, que os acompanham no passeio, já se habituaram aos patos e nem ladram quando os veem, acabando por receber dos pássaros o mesmo tratamento. Quando é a altura da procriação, consigo distinguir os diferentes casais, em constante namoro e, semanas depois, vejo-os seguidos pelas suas proles, bem organizados em fila indiana, em lições de natação nas águas esverdeadas da ribeira.
Através da vedação metálica que protege o quintal, tenho uma visão de 180 graus sobre a ribeira e os terrenos que a delimitam. Nas primeiras semanas de Primavera chegam os rebanhos de cabras e ovelhas, contratados pelos responsáveis citadinos para virem servir de máquinas de cortar ervas. São muito eficientes, não se lhes escapa verdura que se veja , embora deixem um pivete que não é muito agradável mas que desaparece ao fim de dois ou três dias, depois dos rebanhos se deslocarem para pastagens ainda verdejantes. É também a grade de metal que serve de pouso ocasional a uma grande variedade de pequenos pássaros, desde os que eu gosto mais de ver, todos negros, mas com uma mancha vermelha no peito, até aos mais coloridos que nem sei o nome. Ao entardecer, consolo-me a ver os voos rápidos das andorinhas, mete-me impressão como é que não embarram uns nos outros, tal a velocidade e as manobras que executam antes de se recolherem aos característicos ninhos, por debaixo do tabuleiro das pequenas pontes rodoviárias.
Quando a água da ribeira corre com abundância, um pequeno desnível no seu caudal dá lugar a uma minúscula cascata que, já reparei, é o local preferido pelas alvas garças-brancas. Numa posição de imobilidade espantosa, esperam pacientemente a passagem de algum pequeno peixe ou outro animal que não escapa ao seu comprido bico. Raramente vislumbro alguma pequena otter, uma espécie de lontra, mas sei da sua presença porque algumas das árvores das margens mostram o seu trabalho destruidor, roem-nas pela base e fazem-nas cair sem piedade.
Tenho sido bafejado pela sorte em algumas ocasiões. Ontem mesmo, quando a tarde se aproximava do seu fim, sentado numa cadeira de reclinar, o meu sossego de leitura foi interrompido pela passagem de um grande falcão (black hawk). Planou, com as longas asas pretas bem quietas, e talvez porque reparou que eu fiquei espantado, resolveu dar-me um espetáculo, fez mais uma lenta passagem quase por cima de mim e, depois, com a mesma calma com que me visitou, desapareceu por sobre a casa ao lado. Noutra altura, foi um pequeno beija-flor que me proporcionou um momento que eu nunca tinha visto: quando estava a aguar as flores dos canteiros, com a mangueira em ritmo lento, o beija-flor aproximou-se do fraco caudal e ali pairou durante uns segundos, deve ter bebido umas gotas de água sem parar o rápido movimento das suas coloridas asas, com diferentes tons de azul, e safou-se... nem me deu tempo para me recompor da surpresa!
É assim o meu quintal. Para além de um ocasional gafanhoto ou alguns pestilentos mosquitos, também estou sujeito à barulhada noturna das rãs e dos sapos-touros, que não me perturbam o sono, mas são alvo de constante protesto por parte da patroa cá de casa. Mas não é só a algazarra dos sapos que a incomodam. Ela assusta-se com as correrias vertiginosas da «Tixa»!
Já o ano passado, eu e as minha netas, notámos a sua presença. Quando está imóvel, ao sol, pendurada na parede da casa ou perto do aparelho do ar condicionado, a Mia Isabel e a Olívia aproximam-se dela, mas mantêm uma certa distância, ao contrário da avó, que não a quer ver nem pintada. Perguntaram-me como se traduzia lizard para português e então as minhas meninas resolveram dar-lhe o nome de «Tixa», pela simples razão que não conseguiram pronunciar lagartixa sem enrolarem a língua e não sair som correto. A «Tixa» não faz mal a uma mosca, como se costuma dizer, quem sabe porque, felizmente, moscas não são muito frequentes. Ou talvez ela, a lagartixa, é que dá cabo delas e, nesse sentido, é uma mais-valia tê-la no quintal.
Este ano, alarmada, a avó das minhas netas duplicou a sua contestação. Em vez de uma, ela, outro dia, notou que agora as lagartixas eram duas. Eu já estava desconfiado, numa das últimas vezes que vi a «Tixa» ela parecia-me roliça de mais, deveria estar grávida. Nunca vi ovos de lagartixa em lugar nenhum, eu nem seria capaz de os distinguir, o que sei é agora vamos ter que arranjar um nome para a nossa nova hóspede... ou será que há mais? Já propus às minhas netas que deveríamos chamá-la de «Liz», uma forma mais simples de dizer lizard. Espero, nesse sentido, conseguir a aprovação das minhas companheiras.
O facto de vos ter falado hoje nas lagartixas e nos outros animais do meu quintal foi apenas uma maneira de, conscientemente, fugir aos pensamentos pandemónicos que me povoam a mente. Bem, não sou só eu que estou preocupado, o Mundo inteiro anda às aranhas (outro dos animalitos que aparece por aqui) por causa da enfermidade que nos apoquenta. Estamos mesmo no meio de uma desgraça e não sabemos por quanto mais tempo vamos ter que modificar o nosso estilo de vida a fim de tentarmos sobreviver a esta praga. Mas resta-me a esperança que, quando chegarem tempos melhores, poderei ainda ver, do meu quintal, os voos dos patos-bravos e dos falcões, observar as perícias das andorinhas, ouvir os roncos dos sapos e, salvo seja, cheirar os “depósitos” das cabras e das ovelhas.
A «Tixa» e a «Liz» dar-me-ão, então, a oportunidade de as ver a passear pelo pátio e de descansarem, preguiçosamente deitadas sob o sol de Verão, para regalo dos meus olhos e consolo das minhas netas... e desassossego da avó!
Lincoln, Califórnia, 16 de Março, 2020
João Bendito

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