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terça-feira, 7 de abril de 2020

Da escritora Graziela Veiga - EU VOU AJUDAR-TE



EU VOU AJUDAR-TE

O sonho de alguns, é bem diferente da realidade de outros. Vem a propósito do - vai ficar tudo bem!

Enquanto andamos a iludir-nos a a iludir os outros, com essas palavras, há quem não ache piada nenhuma a essa frase. Se ainda disserem - vamos ultrapassar esta situação, vamos conseguir - eu estou mais de acordo, pois já ultrapassei a do sismo de 80. Porém, sou testemunha de que, nada fica como antes.

Esta situação que nós estamos a viver, não é de todo, igual para todos. É bem mais leve para uns do que para outros.

Aqui há anos, quando o meu tio emigrou para o Brasil, terra onde viveu desde os 27 anos, lá casou, teve uma filha, negócios, riqueza, e lá faleceu. Quando vinha cá de férias, lembro-me de ouvir duas expressões que me marcaram - Está tudo bem? Está todo o mundo farto! Eram expressões completamente diferentes. A primeira era de cumprimento, já adoptada e enraizada entre nós. A segunda expressão, era quando acabava de tomar as refeições. Queria dizer que se ele estivesse satisfeito, logo as outras pessoas estariam saciadas.

Vem isto, a propósito da situação que vivemos. Imagino o quanto determinadas pessoas estarão a sofrer, além do isolamento que, já é muito, ainda terão que suportar maus tratos, violência doméstica, a todos os níveis. Algumas crianças, vítimas de abuso sexual, estarão a viver um verdadeiro inferno, sem alternativa, na mesma casa, a paredes meias com o agressor. E ainda, há aquelas que estão a passar fome, digo isto, pelo facto de algumas crianças "matarem" a fome, apenas, na Escola, pois é a única refeição digna que têm, por dia. Muitas delas, vítimas de pais alcoólicos, toxicodependentes, em que o dinheiro da insersão social é todo canalizado para satisfazer o vício, não sobra nada para os filhos, a não ser, maus tratos. E ainda, aqueles velhinhos que vêem as suas reformas serem gastas pelos filhos, ou por quem supostamente cuida deles, como estarão a viver, sem acesso a nada, a não ser entregues a uma enorme solidão que, despoletará depressão e outras doenças, para além daquelas que já sofrem.

Entretanto, há o lado menos doloroso desta pandemia, o único inconveniente, é verem-se privados da sua liberdade, confinados à sua casa, ao seu espaço, porque de resto, continuam com a vida que levavam antes. Continuam com dinheiro em abundância, com uma série de bens essenciais ao seu bem estar e bel-prazer. Para quem não tenha de contar os tostões, as coisas vêm ter a casa, ficam à distância de uma chamada telefónica.

Vai ficar tudo bem! Pois vai. Para aqueles que sonham, que têm dinheiro, trabalho remunerado todos os meses. Para aqueles que têm programadas férias de sonho, é apenas uma questão de tempo, pois logo, tudo voltará à normalidade. Para aqueles que têm saúde, não têm que cuidar de ninguém, a não ser deles próprios, para esses, claro está - vai ficar tudo bem!

Sei que em momentos de crise, nós temos que pintar um quadro mais animador, mas por favor, não pintem um quadro tão colorido para quem vive uma vida a preto e branco. Possivelmente, será insultuoso.

Sei que é uma situação que nos assola a todos, e que ninguém é culpado directamente, mas também sei que, não posso pensar só em mim, pois se o fizer, estou a ser egoísta.

Desde criança, sempre me senti constrangida com o mundo que me rodeia. Sempre me meteu impressão o sofrimento dos outros, mais do que o meu próprio sofrimento.

Tenho consciência das minhas limitações, dos meus defeitos. Mas também tenho consciência do mundo lá fora, cá dentro, pois não embarco na cantiga de que - vai ficar tudo bem - quando na verdade, sei que não vai ficar. Há vidas que se perderam, há pessoas a chorarem essas vidas, a viverem momentos de terror, sem ânimo, sem esperança.

Porém, é bom que alguém tenha consciência do mal que vivemos e simultaneamente, nos dirija palavras de encorajamento, mas mais do que isso, será perda de tempo, sobretudo para aqueles que sofrem e suportam calados, tanta coisa, sem que tenha alguém a olhar por eles. Essas pessoas precisam de ouvir - eu vou ajudar-te- e não - vai ficar tudo bem!

07-03-2020
Graziela Veiga
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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