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quarta-feira, 1 de abril de 2020

SOS CARAGO - Artigo de António Bulcão


SOS carago!

Na minha infância, não havia aeroporto no Faial. Só foi inaugurado na minha adolescência, por um senhor careca que me disseram chamar-se Américo Tomaz e que era Presidente da República.
Os meus tios estavam a estudar “fora”, em Lisboa. Só vinham uma vez por ano ao Faial, num navio muito grande que se chamava Funchal. O Funchal era uma coisa preta cheia de gente, que andava por cima do mar e trazia chocolates grandes e relógios muito bonitos.
Notícias só as que estavam escritas nos dois jornais que havia na Horta. Um rádio muito grande que meu avô tinha de vez em quando gemia coisas em línguas desconhecidas e relatos de futebol.
Os polícias tinham pendurados à cintura cassetetes, que traduzido queriam dizer racha cabeças. Eram homens corpulentos e mal-encarados, prontamente obedecidos à primeira ordem, fosse de trânsito do sinaleiro, fosse de cava daqui pra fora do patrulhador na rua que não gostava das fuças do transeunte.
Nunca ouvi a expressão Estado de Direito Democrático. Estado era apenas o de saúde, Direito era o contrário de torto e Democrático uma impossibilidade em ditadura.
A China era só a tinta com que eu borrava os dedos nas aulas que requeriam desenhos de compasso e régua ao contrário.
Ir a tribunal era uma vergonha e então para a cadeia nem pensar, marca terrível a pesar como uma canga sobre o condenado que ficasse nem que fosse um dia a ver o Pico por uma janela com barras de ferro.
Não haveria então Covid que assaltasse o Faial, tivesse que número tivesse à frente.
Pelo ar só as gaivotas e os cagarros. Pelo mar apenas o Funchal e outros mais pequenos, cheios de gente saudável. E se alguma coisa acontecesse na China para além da tinta, havia de ficar lá, que os comunistas não brincavam em serviço.
Hoje estou metido em casa. Há mais de duas semanas que não saio. Na despensa, muita água e enlatados. Na casa de banho, embalagens que levam dezenas de rolos de papel higiénico, não vão os meus intestinos endoidar e soltarem acima da média.
Tenho televisão por cabo que me traz o mundo em canais que nem vos conto.
Em todos esses canais noticiosos, gente entubada em corredores e hospitais improvisados, velhos a serem despejados dos lares onde já morreram companheiros de espera, gráficos com linhas roxas a subir, quadros com números que ontem eram pessoas, crematórios envoltos em fumo, caixões em fila indiana.
Chega gente em aviões mas fica obrigatoriamente “confinada” em hotéis. Mas já chegou antes outra gente que não cumpriu o estado de emergência, cagou para o Estado de Direito Democrático, para a Polícia e para a possibilidade de ir parar à cadeia. Positivos só nos testes, marimbam-se para todos nós.
Eles é que se mandam, dizem e apregoam. Mesmo que infectem outros.
À estupidez egoísta destes junta-se a de mais uns quantos que exigem ligações aéreas para irem passar férias. Desplante, chama-lhe a Autoridade de Saúde. Estupidez, chamo-lhe eu.
Olha, olha, este canal mostra que na India os polícias andam de vime de marmeleiro a verdugar as costas de quem não obedece. Na Itália um presidente de uma câmara anda na rua a pedir por favor aos seus concidadãos que voltem para casa.
Cai a noite. Os cagarros cantam como nos anos anteriores. Já chegaram e ainda não precisam de SOS. Mas se isto dura muito mais tempo, vão morrer presos em redes de canis. Ninguém lhes vai acudir armado de caixote de papelão, para lhes ensinar que a lâmpada do alpendre não é ainda a luz da manhã.
As linhas de SOS hoje são outras. E estão entupidas.
António Bulcão
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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