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domingo, 17 de maio de 2020

Da Califórnia de João Bendito - DO BALEEIRO AO CONSTRUTOR DE NINHOS


DO BALEEIRO AO CONSTRUTOR DE NINHOS

O NINHO

O meu cliente, sempre simpático, já é pessoa conhecida na loja de materiais de construção onde trabalho. Passa por lá quase todos os dias de manhã, falo com ele alguns minutos – acerca dos pregos ou parafusos que precisa ou discutimos as banalidades do estado do tempo – mas nunca soube como ele se chamava.
Naquele dia, no princípio do Outono, trazia num saco de plástico uma casinha de madeira, na forma de um ninho para pássaros. “Esta está prometida para a Mary”, disse-me, enquanto se dirigia para a caixa registadora onde a Mary geralmente trabalha. Fiquei curioso e, dali a pouco, fui pedir à minha colega que ma mostrasse. Era na verdade bonita, a casinha. Pintada a diversas cores, com o teto amovível de forma a permitir limpeza do interior e com um buraco redondinho no centro, a convidar a entrada de melro em busca de pouso onde construir um confortável ninho.
No fundo da caixinha estava uma etiqueta com o nome: TONY MACHADO. Fiquei logo em pulgas! “Então este simpático senhor deve ser português”, disse eu à Mary. Ela, apenas encolheu os ombros como resposta. Voltei à carga e disse-lhe que também gostaria de comprar uma bird house igual àquela para oferecer à minha neta. “O Tony não as vende”, retorquiu a Mary. “Ele oferece-as, é uma das coisas que faz para se entreter. É milionário mas gosta muito de ajudar as pessoas da vizinhança com pequenas reparações nas suas casas”.
Fiquei abismado com o que ouvira. Agora já seriam dois os tópicos de conversa para confrontar o Tony quando ele voltasse a passar pela loja: primeiro, eu queria saber como é que um milionário como ele não se dedicava a outras formas de entretenimento, e segundo, eu tinha que o questionar acerca da sua (possível) costela portuguesa.

ESTÓRIAS DE FAMÍLIA
Não levei muitos dias para satisfazer a minha curiosidade. Logo que vi o Tony na loja encomendei-lhe um ninho de madeira e ele, com um franco sorriso, aquiesceu ao meu pedido. “Trago-te um dia destes”, afirmou, enquanto eu me preparava para fazer novas perguntas. “Qual nada, estou longe de ser milionário!”, disse-me, quase com uma gargalhada a estalar nos lábios. “Tenho 77 anos, realmente vivo desafogado, os meus quatro filhos estão bem na vida e isso é que me interessa. O resto são cantigas, como me dizia a minha avó Leontina”.

TonyMais um nome que me pareceu português. Senti-me confiante então para fazer a mais importante das perguntas, pedir-lhe que me contasse um pouco da história da sua família e, até para reforçar o meu interesse, disse-lhe que um dos meus bisavôs paternos também era de nome Machado. “Olha, se calhar ainda somos primos!”, replicou o meu amigo. Depois, embora de forma apressada – “Tenho que ir ajudar um vizinho a pintar umas paredes”, desculpou-se – Tony resolveu abrir um pouco do baú das memórias: “Quando te trouxer o ninho de madeira, trarei umas papeladas que tenho guardadas, para veres. Sei pouco do passado da minha família, embora já tenha feito alguma investigação num destes sites de Genealogia”, completou Tony, caminhando em direção à porta do estabelecimento.
Tony Machado cumpriu as duas promessas: ganhei um bonito ninho para o quintal da minha neta e, melhor ainda, recebi uma mão-cheia de documentos que me pareciam muito interessantes. Para mais, Tony Machado contou-me alguns dos pormenores das suas pesquisas e das suas recordações. “Vim nascer a San Francisco, os meus pais resolveram que seria melhor para mim. Os dois eram naturais do Hawaii. Nestes documentos vais ver como é que os progenitores deles foram lá parar...”. Este meu amigo tem um condão especial, cada vez me deixa com mais dúvidas, pensei. Mas não o interrompi.

O MAREMOTO
“Depois de uns anos em San Francisco, os meus pais regressaram a Hilo. Era o tempo da Guerra, viajámos num cargueiro que, dizia-se, poderia ter sido alvo dos submarinos japoneses . Escapámos dessa mas quase que seríamos vítimas de uma outra catástrofe. Já ouviste falar no maremoto de 1946?” De facto eu já tinha lido e visto fotografias desse desastre, quando a Big Island, do arquipélago do Hawaii, foi atingida por um grande maremoto causado por um tremor de terra de 8.6 graus de magnitude, com centro nas ilhas Aleutas, perto do Alaska.
Tony prosseguiu com a sua narrativa: “Nesse “Dia das Pêtas”, logo pela manhã, a vizinha da casa ao lado bateu à porta do nosso quintal, que ficava voltado para o Pacífico, a pedir emprestada uma xícara de açúcar. O meu pai viu, por cima da cabeça da senhora, que algo não estava bem. O oceano tinha quase desaparecido e ele apercebeu-se do que tinha que fazer. Agarrou em mim – eu tinha apenas três anos – e na minha mãe, meteu-nos no carro e disse à vizinha que alertasse a sua família e corressem para lugar mais alto. Dali a poucos minutos, a grande vaga de mar entrou por terra dentro. Morreram mais de 150 pessoas, a nossa casa deu uma volta de 180º sobre a fundação. O meu pai costumava dizer, a brincar, que fomos salvos por uma xícara de açúcar!”.
Nessa mesma noite comecei a ler as papeladas que o Tony me levara. Ali estava uma resenha histórica a descrever as origens do nome MACHADO, baseada na lenda do ataque ao Castelo de Santarém, tomado aos Mouros em 1147. Diz o papel que os irmãos Pedro e Nuno Mendes, que destruíram o portão do Castelo a golpes de machado, ficaram a partir daí conhecidos pelos Machados. Não perdi muito tempo com essa lenda, o que eu queria saber era como os Machados progenitores do Tony, tinham chegado ao Hawaii.
Ao traduzir dos documentos que o Tony me facilitou fui descobrindo factos muito interessantes, ao mesmo tempo que me surgiram ainda mais dúvidas. Comecei a ordenar nomes, lugares e datas e, na minha mente foram aparecendo hipóteses e possibilidades para outros episódios que se terão perdido nas narrativas de geração para geração. Mas, ainda mais importante, eu queria saber quem teria sido Manuel Libon Machado, o avô do meu amigo Tony.
1870, AGOSTO. NA ILHA
Ti António Cristove encosta-se à bengala
E conta das suas viagens
Nas barcas-de-baleia que vinham à ilha
(Pedro da Silveira)
Freguesia de Guadalupe, lugar da Ribeirinha, Ilha Graciosa, Açores.
Manuel tem quinze anos. Trabalha nos campos do padrasto, cuida das vacas, dos porcos e até de um pequeno rebanho de cabras. É seu companheiro de lides um burrinho a quem Manuel chama «Teimoso», aliás nome bem apropriado a um jumento. Seu pai, António José, faleceu tinha Manuel apenas quatro anos, de forma que nem houve oportunidade para muitos estudos, havia que ajudar a mãe e a irmã, Maria Júlia, a escola ficou relegada para segundo plano. O padrasto fazia-lhe a vida negra, era exigente. Valia-lhe a amizade e a proteção da irmã, rapariga já apalavrada para casar dentro de poucos meses. Manuel gostava de a ver em melodiosas disputas com o canário da Terra que ela mantinha numa gaiola pendurada junto da porta da cozinha– fizera-a o pai, com canas apanhadas na beira da rocha. Por outro lado, detestava o futuro cunhado, que abusava do trabalho dele e tratava-o como se fosse um moço de recados.

Nas tardes de Domingo, no adro da igreja, Manuel tentava aprender com as conversas dos velhotes que ali passavam momentos de lazer. Ia com um primo, rapaz da sua idade, prestavam atenção às estórias dos idosos, ouviam as descrições de viagens fantásticas por mares infinitos, até terras tão distantes “como daqui até à Lua”, exagerava Ti Jónin das Almas. “O que a gente penava por esses mares abaixo, Nosso Senhor! E gentes diferentes que eu vi, com falares que nem entendia uma palavra. Os capitães eram malinos, por pouca coisa largavam uma carga de pancadas, principalmente nos pretos. AH!, vocemessês nunca viram um preto? Aquilo é gente c’má gente, têm fama de malandros mas é só pela escravidão que sofrem”. Atentos, os jovens enfeitiçavam-se com as narrativas dos velhos e, esperançosos, imaginavam-se com os bolsos cheios de águias douradas e a viverem nas terras da fartura, do outro lado do mar.
“Ouvi que anda uma barca por aí à noitinha, estava ontem pairada fora da ponta de Afonso do Porto.” Ti Jónin estendeu os olhos, como se quisesse ver o mar dali mesmo. “Um ano fui por esse mar abaixo num navio de Bateféte, chamava-se «Acushanéte», nunca aprendi bem aquele nome. Parecia que o mar nunca mais acabava, apanhámos baleias bastantes, mas mesmo assim ainda levámos três anos a navegar. O que valeu é que um dos marinheiros amaricanos que ia co’a gente, chama-se Melvin – nunca me esqueci do nome dele – punha-se a contar estórias, dizia que ainda um dia havia de encontrar uma baleia branca. Ê cá andei anos e anos por cima desses mares, mas nunca vi nenhuma!”

A FUGA
Lá no monte salta a cabra
No mar adana a baleia
Canta o melro na gaiola
Chora o preso na cadeia
(Cancioneiro Popular dos Açores)
Manuel e o primo Delmindo “Pilota”, no regresso a casa, decidiram que talvez aquela barca que o Ti Jónin falou, seria o escape para a dura vida que levavam na Graciosa. Delmindo hesitava porque já andava de namoro com a Maria da Guia mas, ao mesmo tempo, já se imaginava de regresso à ilha com dinheiro suficiente para lhe poder proporcionar uma vida mais decente, igual à das senhoras da Vila de Santa Cruz, que não trabalhavam e passeavam-se pela Praça sempre bem vestidas. Manuel, por seu lado, resolveu que não diria nada à mãe, apenas informou a irmã e pediu-lhe que o ajudasse a meter umas roupas numa saca. Maria Júlia abraçou-o e desejou-lhe boa sorte, que rezaria por ele todas as noites. “Ao menos não ficarás como eu ou como o meu canário, toda a vida fechados nestas gaiolas... a Senhora do Guadalupe permitirá que sejas feliz.”
Manuel passou pela cocheira, a fazer uma última festa ao «Teimoso» e meteu-se a caminho, ia encontrar-se com Delmindo na canada de Jorge Gomes. No entanto, desconfiou da demora do primo e resolveu não esperar mais, de certeza que a ideia de abandonar Maria da Guia teria pesado mais forte na consciência do moço. Resoluto, Manuel desceu o atalho que percorrera tantas vezes quando ia pescar às vejas para a baía da Caldeirinha. À beira d’água meteu conversa com um pescador que, junto do seu barquinho, ali estava a preparar-se para a faina noturna e convenceu-o que o levasse até ao navio, ancorado mais para o lado da baía de Afonso do Porto.
Manuel nem uma vez sequer se voltou para olhar a Graciosa...

A VIAGEM
Manuel nem sabe como conseguiu resistir às primeiras semanas daquela viagem. Nunca na sua vida tinha posto os pés num navio, nunca tinha sequer aprendido a nadar. O ritmo constante do árduo trabalho a bordo ainda pesava mais no seu sofrimento. Levou tempos para dominar os efeitos do enjoo, perdeu muito peso – Ah! Como lhe faziam falta as sopas e os guisados da Maria Júlia – e teve dificuldade em aprender as novas tarefas, parecia-lhe que nunca se acostumaria à vida a bordo. “Aqui há que dormir depressa, não há tempo nem para sonhar”, dizia-lhe Rafael, homem duro como uma rocha, com a pele tão curtida pelo mar e pelo sol que nem parecia humano. “Nasci na ilha Brava, tal como tu deixei a minha terra e as minhas gentes muito novo”, contou-lhe o veterano baleeiro, numa noite de luar meridional, quando viajavam já passados a Ilha de Santa Helena, onde acostaram para obter mais provisões e prepararem a difícil passagem da Terra do Fogo. “Espero que não te aconteça como a mim. Parti com a intenção de fazer só uma viagem mas, do mesmo modo que lanço o arpão a estes monstros, também eu fiquei preso a esta vida. Até parece que já nem sei andar em terra firme”.
Os avisos e conselhos de Rafael ajudaram Manuel a ultrapassar as dificuldades mas nada o poderia preparar para os tormentos que sofreram na passagem de um oceano para o outro. Dias seguidos de tempestades tremendas em que o mar parecia querer tragar o navio ou arremessa-lo contra os altos penedos. Dois jovens marinheiros perderam a vida, um deles atirado borda-fora por uma onda que varreu o convés.
Seguiram-se semanas de bonança na imensidão do Pacífico. Agora era o calor que os atormentava e, para mais, a falta de água e de viveres já se fazia sentir. Manuel evitava as querelas e atritos com os companheiros. Alguns, os mais verdes, acometidos por surtos de desespero, envolviam-se em brigas frequentes, fazendo com que o capitão, homem experimentado mas severo, os mantivesse debaixo da sua alçada à força de açoites e espancamentos. O jovem graciosense estava com esperança que as coisas mudassem em breve, ouviu os outros falarem no paraíso que eram as Ilhas dos Kanakas, onde tudo era verde e os frutos e as mulheres eram doces e abundantes...

DO HAWAII AO ALASKA
O vigia, no topo do mastro, gritou as palavras que todos ansiavam ouvir já há semanas: «Terra à Vista»!
A paragem na baía de Lahaina seria breve, o suficiente para reabastecer os porões com tudo o necessário para o destino final desta viagem. Seguiriam rumo ao norte, em direção aos mares frios do Alaska, em perseguição às baleias do Ártico. Manuel ficou com boa impressão daquelas ilhas, num dia em que o capitão o escolheu para ir a terra ajudar na compra de produtos, teve a oportunidade de admirar os verdes campos todos cultivados e comoveu-se com a amabilidade das pessoas, muito diferente do ríspido comportamento dos baleeiros seus colegas de viagem. Foi das poucas vezes em que a Graciosa lhe ocorreu à memória. Passaram-se muitos meses desde que deixara a sua ilha natal e já tinha percorrido meio-mundo, como lhe mostrou num mapa o imediato do navio. E, dentro de dois dias, estariam a navegar para norte.

Para compor a falta dos tripulantes falecidos no Estreito de Magalhães, o capitão admitiu a bordo dois jovens havaianos, moços fortes e desejosos de aventuras. Embora não entendesse uma palavra do que diziam, Manuel sentiu um salutar afeto pelos noviços e tentou ensinar-lhes muito do que já havia aprendido. O respeito era mútuo, Kalani e Kaneki esforçavam-se, por seu lado, por transmitir aos outros tudo o que sabiam acerca do mar, como usar as estrelas para orientação e como entender o comportamento das ondas.
Nesse ano de 1871, o Ártico tornou-se ainda muito mais difícil de trabalhar do que nos anos anteriores. A flotilha de barcas baleeiras não teve dificuldade em encontrar cardumes de baleias, os porões estavam a atulhar-se com cascos de óleo e com boas quantidades de ossos dos cetáceos. Mas a situação atmosférica estava a preocupar os capitães, que, em constante contato, se preparavam para o pior. No navio de Manuel alguns tripulantes começaram a mostrar sinais de descontentamento, sobretudo os dois havaianos, que tinham sérias dificuldades em suportar o frio e as constantes tempestades de ventos fortes que deixavam os navios cercados por grandes blocos de gelo, chegando ao ponto de se recusarem a trabalhar.
O capitão, numa drástica atitude para não perder o controle da tripulação, mandou que amarrassem os dois «kanakas» ao mastro do navio e, sem piedade, atirou-lhes às costas um balde com água a ferver, “Para que aqueçam os ossos, seus malandros!”. Raivoso com o gesto do capitão e condoído com o sofrimento dos companheiros, Manuel arranjou modo de os ajudar, tratando-lhes das queimaduras e fazendo parte dos trabalhos que lhes eram destinados. O elo de amizade entre os três ia-se estreitando e, em segredo, já faziam planos para, quando voltassem ao Hawaii, abandonarem aquela vida de baleeiros.
O regresso, contudo, deu-se em condições dramáticas. Com o súbito agravamento das condições climatéricas, muitos dos navios da frota baleeira americana ficaram presos nos gelos, forçando as tripulações a terem que procurar refúgio nas canoas, de modo a poderem deslocar-se mais para sul, arrastando os pequenos barcos sobre o gelo. Sete dos navios, que ainda estavam em águas-livres, receberam ordens para esperarem e recolherem os náufragos. «Progress», a barca onde Manuel viajava, foi um desses. Passados alguns dias de angústia, puderam, finalmente, as sete barcas salvadoras rumar a sul, apinhadas com os mais de mil e duzentos marinheiros dos outros trinta e três navios que se perderam, esmagados pelo gelo. Foi o maior desastre (em número de navios naufragados numa só campanha) de toda a história da baleação americana, tendo apenas como conforto o facto de nem um só baleeiro ter morrido.

NOVA FUGA... NOVA VIDA
Última semana de Outubro de 1871.
Honolulu tornou-se pequena para acomodar a súbita invasão de baleeiros. O açoriano Manuel e os seus amigos Kaleni e Kaneki traziam um plano bem estudado. Sabiam que o capitão ia fazer tudo para não perder tripulantes, a «Progress » tinha que regressar a New Bedford para descarregar a preciosa carga de óleo e todos os braços eram necessários. Dissimulados entre os náufragos, os três desertores meteram-se terra-a-dentro, afastaram-se do centro da cidade e procuraram refúgio numa aldeia indígena. Foram escondidos das autoridades que, alertadas pelo capitão, os procuravam por toda a ilha. Resolveram então que seria melhor irem viver para a Big Island, longe de tudo e de todos.
Manuel nunca se arrependeu. Integrou-se bem na cultura local, aprendeu a língua e usufruiu da amizade e respeito das gentes simples da ilha. A sua chegada antecedeu em alguns anos a primeira vaga de imigrantes madeirenses que aportaram ao Hawaii em 1878, contratados para trabalharem nas plantações de cana de açúcar.

2019 - LINCOLN, CALIFÓRNIA
Já há dias que não via o meu amigo Tony Machado. Há duas semanas fui a casa dele, informei-o dos resultados da pesquisa efetuada na ilha Graciosa pela minha amiga Mercês Coelho, uma graciosense com queda e gosto para pôr a história da sua ilha à disposição dos interessados em descobrirem as suas raízes. Levei-lhe cópias dos assentos de nascimento do seu avô e de casamento dos bisavós paternos e maternos. A Mercês enviou-me os originais e fez o favor de os interpretar para português moderno já que eu não conseguia decifrar a caligrafia dos padres da freguesia de Guadalupe. Depois, apenas traduzi os documentos para inglês e deixei-os ao Tony, para que os lesse com calma.

No encontro seguinte, Tony quase que me partiu as vértebras com o forte abraço com que me envolveu. “Finalmente fiquei a saber pormenores que tenho buscado já há vários anos”, disse-me visivelmente feliz. “Desconfiava que o meu avô era açoriano mas não sabia em que ilha nascera. E sempre julguei que ele se chamava Manuel Libon Machado mas afinal era Lobão e não Libon. Deve ter mudado o nome porque o Lobão é de difícil pronúncia para os americanos”. Eu expliquei ao Tony que foi esse um dos pontos que me fizeram solicitar a pesquisa na Graciosa, onde o nome é muito frequente. Ainda me ficaram algumas questões por descobrir, noutras penso que não estarei muito longe da verdade, mesmo depois do atrevimento em que me meti ao romancear algumas passagens desta saga do imigrante da Ilha Branca. Deixei o Tony completar o resto da estória:
“O meu avô Manuel viveu sempre na Big Island, foi dos primeiros paniolos de Hilo. Comprou terras, tinha um rancho de criação de gado leiteiro, talvez por influência da sua juventude nos Açores, onde nunca mais voltou. Casou já com quarenta anos, com Leontina Rodrigues que, penso, terá vindo da Madeira. Tiveram três filhas e três filhos, o meu pai, Frank, era o mais velho dos rapazes. O meu avô açoriano morreu antes de eu nascer mas lembro-me muito bem da minha avó e dos bolos de massa com um ovo dentro, que ela fazia só para mim”.
“Já agora, João, e porque tu me ensinaste todos estes segredos do passado da minha família, vou dizer-te duas coisa: Sempre me senti orgulhoso da odisseia migratória das gentes açorianas e agora, como deves compreender, ainda muito mais. E, sabes por que eu gosto de construir estes ninhos para pássaros? Porque das poucas coisas da sua ilha natal que o meu avô contava aos filhos era das saudades que tinha da sua irmã - agora sei que ela se chamava Maria Júlia - e do quanto ela gostava do passarinho que tinha numa gaiola. Como não os quero ver presos como o da minha tia-avó, eu dou-lhes a possibilidade de uma vida confortável mas em liberdade.”

Lincoln, Califórnia, 19 de Novembro, 2019
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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