O ESTÁDIO DA PEDRA
Sempre preferi ter as aulas de Educação Física, nome oficial da disciplina a que chamávamos mais ligeiramente de “Ginástica”, na primeira hora do calendário escolar. Pela fresquinha, aquilo até sabia bem, às oito da manhã entrávamos no balneário, espaço que, centenas de anos antes, os frades Franciscanos usaram como cozinha e refeitório. Era apertadinho, húmido, escuro mas era o que era possível num edifício que não tinha sido planeado para acolher rapaziada com o sangue na guelra.
O sr. Professor Nuno Marciano Mendes Ribeiro Monteiro Paes, com a sua inimitável voz de cana rachada --só o Herculano é que o conseguia fazer com sucesso -- comandava a horda de atletas equipados todos de branco e com as sapatilhas novas a guinchar no sobrado do ginásio, conduzindo o pelotão em corrida em oito em redor do exíguo espaço “Para aquecer esses músculos, que amanhã é que quero ver quem não tem dores”. Era verdade, depois de quase três meses de férias em que a actividade física de muitos se limitava a uns mergulhos na Silveira ou a umas calmas caminhadas do Adro da Sé até ao Pátio da Alfandega, o dia a seguir à primeira aula de Ginástica era um martírio, todos se queixavam de dores na barriga das pernas ou nos músculos da outra barriga. O simpático professor consolava-se a largar umas sonoras gargalhadas quando nos recebia na seguinte aula, os seus olhos tornados muito pequenos pelas fortes lentes escuras não escondiam o gozo de nos ver arrastar os esqueletos, agora sem forças para correr ou subir a gadanho as altas cordas penduradas do teto.
Completada a tortura aos nossos quase desfeitos músculos e para aliviar os ânimos, o professor fazia sair do seu armário a famosa bola do “Brutobol”, uma já mais que velha e pesada bola que era lançada no meio do grupo e então era um salve-se quem puder, a ver quem fugia mais do “Sucata” ou do Hsien Phu Ling, atletas que não tinham jeito nenhum para jogar futebol mas que levavam tudo e todos à sua frente. Umas canelas meio esfoladas ou uma ocasional nódoa negra nunca fizeram mal a ninguém!
Servia o ginásio para jogos de basquetebol mas para jogos de andebol ou futebol de cinco tínhamos que passar para o campo terreiro mesmo ao lado. Com equipas escolhidas a dedo num processo que não era lá muito democrático — os mais desajeitados ficavam sempre para o fim — faziam-se partidas tipo bota-fora, perdeste vais tomar duche mais cedo. As balizas eram pintadas nas paredes e as áreas dos guarda-redes eram feitas com o arrastar dos pés na terra dura.
Mas, digamos a verdade, para o pessoal se sentir bem, nada melhor que uma jogatana no famoso Estádio da Pedra! Aproveitando um “feriado”, um “furo” no horário ou até mesmo quando se faltava de propósito a uma aula para evitar os questionários das “chamadas”, aquele recinto estava quase sempre animado com renhidas partidas que não tinham árbitros, regras ou tempo de terminar. Interrupções só se faziam quando passava o carro do Dr. Manuel Rodrigues ou quando o Dr. Machado, altaneiro e pachorrento, entrava pelo portão de ferro. O sr. Reitor geralmente não atravessava o campo, subia pela escada da Ladeira de São Francisco, mas se estava de lua, mandava umas bocas aos futebolistas, “Se fosse no meu tempo e do Ludgero, vocês nem tinham lugar nas reservas”, fazendo alusão ao seu passado de jogador da primeira categoria do Lusitânia, assim como ao sr. Moreira, agora seu chefe de contínuos.
Muita vez os mais pequenos não tinham oportunidade de jogar, os mais velhos impunham a sua condição de veteranos e tinham sempre prioridade. Se não fosses muito habilidoso só jogavas se a bola fosse tua. E quando não havia bola disponível, lá se fazia uma colecta e cada um contribuía com cinquenta centavos ou um escudo para conseguir atingir os 20 escudos necessários para ir ao fundo da Rua Direita, à loja do Noé Chinês, comprar uma bola de borracha.
Actualmente o Estádio da Pedra está semeado com canhões que viajaram nas caravelas quinhentistas até às Índias e ao Brasil, já lá não estão as gigantescas árvores que o ornamentavam mas que dificultavam sobremaneira as fintas dos ases da bola. As raízes rasteiravam algum jogador menos experiente com os obstáculos e as pedras da negra calçada rebentavam solas de sapatos e a pele de muito joelho. A inconveniência de ter de correr atrás da bola quando ela saltava para a Ladeira ou era chutada de forma que só ia parar no Jardim de Cima, nunca foi desculpa para os alunos do Liceu nem para a rapaziada que vivia nas ruas vizinhas. Para além de estudantes que se tornaram grandes futebolistas, por ali passaram outros “atletas” que usavam o Estádio nas horas mais tardias do dia ou nos sábados, já depois do Luís Bretão e os seus Comandantes de Castelo terem mandado as tropas destroçar no fim das Actividades da Mocidade Portuguesa.
Era a hora da rapaziada do Pisão, da Guarita, da Rua da Garoupinha e do Desterro mostrarem as suas habilidades, fazendo com que aquele recinto tivesse um aproveitamento que só era igualado pelo Jardim do Porto das Pipas ou pelo Relvão, onde a malta do Corpo Santo ou dos Quatro Cantos também organizavam grandes jogos que formaram muitos dos jogadores que depois vieram a ser estrelas nas principais equipas da cidade. Então aparecia a equipa dos Caipiras contra os irmãos Serafins, o Maçaroca fintava o Perinca, o Gibicas e o Saca até jogavam descalços se fosse preciso poupar os sapatos. O Jorge Calheca andava sempre com um olho na bola e outro na janela da casa, não fosse a tia Olímpia descobrir o que ele estava a fazer e o António das Bicicletas fugia da oficina do pai para se juntar ao José Pedro e aos outros marabalistas da bola. Mas o que eu gostava mais de ver era o José Cagão, que só tinha lugar a guarda-redes mas era o que fazia mais barulho, talvez a tentar superar a debilidade física com os gritos de tácticas aos seus companheiros, “Passa a bola, não faças caixinhas!”, “Tás quase na rua, não jogas mais!”
Claro que, tanto nos jogos dos estudantes do Liceu como nas partidas entre os rapazes das redondezas, era frequente a coisa não acabar muito bem, num instante se armava uma discussão. No lado da baliza riscada na parede da JEC, uns olhos viam golo e outros viam bola à barra! No outro extremo do campo, ou a bola passava por cima ou ao lado da barra marcada com um casaco ou uma pasta de livros. Os ânimos azedavam-se e as chapadas e empurrões vinham ao de cima. Felizmente eram brigas de pouca duração, dali a minutos ou no dia seguinte lá estavam os mesmos ou outros jogadores, esquecidos das quezílias e prontos a marcar o melhor golo das suas vidas.
Os momentos passados no Estádio da Pedra foram tão importantes para a nossa formação como foram, a uns mais do que outros, as aulas e os ensinamentos que recebemos dentro das centenárias paredes do antigo convento.
Cá por mim nunca me vou esquecer daquela defesa que fiz a um potente remate de um dos melhores jogadores que por ali passou. Rompi as calças mas, pelo menos naquele dia, fui o melhor jogador em campo!
Lincoln, Ca. Julho 4, 2012.
João Bendito
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