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terça-feira, 20 de outubro de 2020

De António Bulcão - O cozido das urnas de Ricardo Araújo Pereira

O cozido das urnas de Ricardo Araújo Pereira

Nunca gostei que gozassem com quem tem um défice cognitivo. Os chamados doidos, ou tolos, ou seres por qualquer forma desprovidos de razão.

Lembro-me de, há muitos anos, Herman José ter levado a programas seus alguns alienados. Foi uma mulher que se julgava rainha, depois um homem que se anunciava como faquir. Ambos estavam absolutamente convictos de que eram aquilo. A mulher descrevia palácios onde nunca pusera os pés, conversas com monarcas de outros países. O pobre do faquir teve de se deitar em cima de uma cama de pregos para provar as suas capacidades, gemendo a cada ferro que lhe furava as carnes, mas sempre a jurar que não lhe doía nada, que aquele era o seu dia-a-dia.

E a plateia ria muito. Com cada pergunta de Herman José, que fingia seriedade para não ofender os entrevistados, que reprimia ele próprio o riso perante cada resposta descabida. A pobreza de espírito transformada em espectáculo, para diversão dos presentes e dos telespectadores, a fim de aumentar as audiências.

Incomodava-me, aquele gozo. Tanto que deixei de ver o programa.

Há uma semana, Ricardo Araújo Pereira expôs publicamente algumas incapacidades humanas, no seu programa "Isto é gozar com quem trabalha". Só que não eram doidos nem tolos, os intervenientes. Eram candidatos por alguns partidos às eleições legislativas regionais.

Era a candidata pelo Bloco na Graciosa, que confessava nem sempre estar atenta aos debates da Assembleia, e que às vezes desliga...

Era o candidato da Iniciativa Liberal pela Terceira que, instado pelo moderador para falar do Plano de Revitalização, afirmou conhecer pouco de tal Plano e o que lhe interessava era falar de agricultura, para o que pediu permissão.

Era o candidato do CDS pela Graciosa que, quanto a transportes e turismo era testemunha de maior afluxo de gente à ilha branca porque o pai tem umas casas de turismo rural, no que respeita a agricultura sabe haver terrenos cultivados e outros nem por isso, e em relação a pescas acha que existe um porto de pescas na ilha e que há sempre peixe à venda...

Era o candidato do Aliança por São Miguel, que quis começar como lhe pedira o filho mais pequeno e o pai lhe ensinara, desatando a cantar...

Não quero dizer que Ricardo tenha feito o mesmo que Herman. Limitou-se a reproduzir as tristezas daquelas almas candidatas e pôs toda a gente a rir delas. No outro dia, estava essa parte do programa televisivo nas redes sociais e mais gente ainda a rir.

A mim, não me deu para rir. Senti uma tremenda vergonha. Não duvido da seriedade e capacidade profissional de cada um daqueles candidatos. Serão certamente boas pessoas, apreciadas nos meios onde vivem. Mas não gostaria de os ver na Assembleia Legislativa, o órgão máximo da Autonomia. Perdoem os visados, mas não gostaria mesmo nada.

Claro que a culpa não é só deles. É dos partidos que os convidaram ou aos quais pertencem, dois deles com representação na Assembleia. Foram baixando tanto a fasquia que se criou a impressão que qualquer um pode ser deputado. A verdade é que os deputados que tomam assento naquele órgão, eleição após eleição, têm vindo a perder qualidade a cada legislatura. São muito poucos os que terão capacidade para representarem concidadãos seus. O que é muito estranho...

De facto, no princípio da Autonomia, não era assim. Em 1976, perante essa coisa nova chamada democracia, os partidos então existentes tentaram, em cada ilha, escolher os melhores para serem candidatos. Em algumas ilhas poderiam não ser bons. Mas eram os melhores do lugar... Hoje, passados 44 anos, a tendência parece ser a oposta.

Não deveria ser ao contrário? Com o passar dos anos e a aprendizagem que deveria ter havido sobre o que é realmente um regime democrático, a exigência não devia ser maior e os representantes deste povo serem melhores a cada legislatura?

Mas a verdade é que os melhores não apenas não estão lá, como fogem a sete pés de serem sequer convidados. Pela vergonha que sentiriam em ver-se misturados com gente impreparada, que por vezes nem sabe escrever nem falar.

Antes de desatarmos à gargalhada com o cozido das urnas açoriano, talvez fosse melhor pensarmos que Ricardo Araújo Pereira pôs Portugal inteiro a rir não apenas daqueles candidatos, mas de todos nós.

Porque fomos nós que deixámos que as coisas chegassem a este ponto...

Diário Insular de hoje

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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