Doentes digitais
Muito tempo no poder provoca desgaste, vícios e erosão na criatividade.
O programa eleitoral do PS (à semelhança do PSD) reflecte um pouco isso, sem uma estratégia clara sobre o que se pretende para o futuro das nossas ilhas.
Os maiores partidos acenam com duas bandeiras que trazem despesa e não acrescentam um pensamento de coesão e desenvolvimento para as ilhas e suas gentes.
Um quer tarifas baratas inter-ilhas e o outro quer um “hospital digital”.
O primeiro não explica como nos põe a viajar mais barato numa empresa falida e a precisar urgentemente de dinheiro e o segundo foi recuperar uma ideia velha com mais de dez anos, que já tinha tentado implementar e resultou num desastre.
Para quem não se recorda, conto muito resumidamente.
Em 2004 o Governo Regional decidiu - e bem - que os nossos hospitais e unidades de saúde precisavam de reunir toda a informação clínica dos utentes num único registo, acessível aos profissionais de saúde em qualquer ponto do arquipélago, incluindo também uma vertente administrativa e de recursos humanos, materiais e financeiros, para funcionar como ferramenta de apoio à gestão hospitalar, numa uniformização de todo o Serviço Regional de Saúde. Em resumo, o tal “hospital digital”.
Para tal, foi contratada uma empresa espanhola, a INDRA, por 4,4 milhões de euros, a mesma que, mais tarde, seria contratada pelo governo de Sócrates para instalar o falhado Sistema Integrado de Vigilância, Comando e Controlo.
Pelo histórico da gestão ruinosa dos sucessivos secretários da saúde e da funesta Saudaçor, era mais do que evidente que todo este processo não ia dar certo, tal como a gestão da SATA.
E não deu.
Em 2011 - imaginem, sete anos depois! - o “hospital digital” ainda não estava instalado e o que existia era uma enorme trapalhada entre o governo e a empresa espanhola, que entretanto já tinha recebido 2 milhões de euros.
O secretário de então, um poeta erótico nas horas vagas, mandou a Saudaçor despedir os espanhóis e o projecto ficou no forno à espera de uma nova Brites de Almeida, a Padeira de Aljubarrota, que o recuperasse dos castelhanos.
Pelos vistos, foi ressuscitado agora, nesta campanha eleitoral, à falta de melhor.
Só que, entretanto, os espanhóis voltaram a casa com os bolsos cheios, o secretário foi fazer mais poesia, a Saudaçor foi encerrada, deixando-nos um calote de mais de 700 milhões de euros, o dito hospital digital nunca existiu e todos nós, doentes e contribuintes, fomos engrossar o cheque e as listas de espera para consutas e cirurgias.
Daí para cá o “hospital digital” tem sido um pesadelo, resultando há três anos que os dados de quase todos os habitantes dos Açores estivessem escancarados no ‘site’ da Administração Regional de Saúde do Alentejo!
Antes do “hospital digital” os nossos governantes deviam preocupar-se em investir mais nos recursos - humanos e técnicos - dos três hospitais e das unidades de saúde e numa melhor escolha de secretários da saúde e de gestores hospitalares, em vez do amiguismo e clientelismo habitual.
A começar pelo maior hospital da região, que vem sobrevivendo, clamorosamente, de um enorme subfinanciamento, sem dinheiro para pagar a fornecedores, comprar medicamentos, contratar profissionais de saúde e repor o número de camas que perdeu nos últimos anos.
Nunca como durante esta pandemia se percebeu quão importante é o nosso sistema de saúde e a falta de tantos recursos que tiveram que ser remediados à última da hora, nomeadamente com novas contratações, obras de emergência e muitas doações de privados.
O maior hospital da região - à semelhança dos outros - vive no contexto de um sistema tecnicamente falido e continuamente envolto em problemas de gestão que em nada contribuem para um melhor sistema de saúde.
Directamente, o HDES tem nas suas contas dívidas bancárias da ordem dos 109 milhões de euros, sobre os quais paga taxas de juro que, em média, rondarão os 4%.
Ora, se a Região se financia a 1,5% qual o sentido que faz deixar o HDES ir à banca pagar quase o triplo?
Faça-se lá o saneamento financeiro desta instituição, que tem vindo a ser esmifrada com subfinanciamentos grosseiros, expressos em resultados transitados negativos da ordem dos 273,3 milhões de euros, no ano passado, e um património líquido negativo da ordem dos 216,7 milhões de euros.
Pelo caminho também vão sendo apanhados os fornecedores, que chegaram a 74 milhões a crédito em 2019, mais cerca de 5 milhões do que no ano anterior.
Dos clientes, que estão a dever cerca de 67 milhões, destacam-se a ADSE e uma lista de outros regimes de saúde nacionais, como a PSP ou o exército, sem razões plausíveis aceitáveis.
E é esta a instituição a quem confiamos a nossa saúde, mas não financiamos adequadamente, deixando as coisas a pairar no limbo e mercê da sorte.
É neste triste cenário que querem agora um “hospital digital”.
Para quê?
Certamente para “doentes digitais”, porque os “doentes reais” continuam a engrossar as listas à espera de uma consulta e de uma cirurgia.
Paciência de santo, têm os pobres doentes.
Outubro 2020
Osvaldo Cabral
(Diário dos Açores, Diário Insular, Multimedia RTP-Açores, Portuguese Times EUA, LusoPresse Montreal)
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