O viajante volta já
Num momento trágico da sua vida, o grande poeta espanhol Antonio Machado disse, num poema inesquecível: “A distinguir me paro las voces de los ecos, / y escucho solamente, entre las voces, una.”
Ao longo da minha vida, permaneceram bem audíveis em mim os versos do poeta de Sevilha: ignorar os ecos, ouvir as vozes, escutar tão-só aquela que nos guia. A voz única que aqui me trouxe foi diferente daquela que em Machado ressoou; a minha foi a que, logo na adolescência, me chamou para ensinar. E eu obedeci, a isso tendo juntado a necessidade e o gosto de aprender com quem generosamente me dá atenção. Como aqueles que hoje aqui vieram: amigos, colegas, família. A todos estou infinitamente agradecido.
A voz que me chegou não foi apenas a do chamamento a que o poeta deu forma insuperável. No princípio de tudo estiveram meus pais e o exemplo que deles colhi, sem que tivessem de o impor. O exemplo de querer, de não desistir, de ir além, de ousar, de trabalhar, quando se não tem outra herança que não seja essa mensagem de perseverança, de superação e de recusa dos limites. A melhor e a mais valiosa das heranças, porque se não esgota nem esquece.
Num tempo em que o elevador social era ronceiro, alguns acharam um atrevimento que o filho do sargento correeiro e da dona de casa ambicionasse mais do que aquilo que a predestinada condição social tinha ditado. Não foi assim e a meus pais devo o apoio e o estímulo, o exemplo da honradez e a coragem para sair da ilha. Por isso, a minha gratidão não cabe nestas pobres palavras; e a memória de ambos, que aqui, neste dia, comovidamente evoco, não se extingue e está bem viva: em mim e no meu filho Rodrigo, que seguramente recorda e confirma as qualidades que ainda pôde conhecer no avô Correia e na avó Antonieta. Qualidades que, também ele, adotou como suas.
Como bem sabemos os que temos a sorte de ter nascido nos Açores, para lá do mar há sempre um mundo para descobrir. Aquele que eu descobri estava na universidade que me acolheu como alma mater, esta Universidade de Coimbra onde estudei e onde ensinei, desde 1974, ano de todas as ilusões e que foi também, como disse Eça a propósito de outra coisa, “aurora de um mundo novo”.
Diferentemente de Eça, não encontrei, ali nas escadarias da Sé Nova, um Antero a cujos pés me sentasse, “a escutar, num enlevo, como um discípulo”. Mas tive o privilégio de ser professor da Universidade de Coimbra. Foi esta a honra maior que a vida me concedeu: ter aprendido com os meus professores e ter transmitido a outros alguma coisa do que eles me ensinaram, mais aquilo que acrescentei. Assim tenho estado na minha Universidade de Coimbra, uma instituição (isso mesmo: uma instituição) cujas tradições não vejo como um peso, mas como um legado, cujo ritual há de ser um protocolo, não uma liturgia. Deixem-me dizê-lo: a minha Universidade de Coimbra também me ensinou que não se é universitário fechado na alta da cidade e que é preciso passar a ponte de Santa Clara, não apenas fisicamente, mas sobretudo mentalmente, conhecer mundo, dialogar com outras gentes e com outros saberes. Sempre recusei e quase abomino a universidade dos coimbrinhas e a Lusa Atenas do conselheiro Acácio, “reclinada molemente na sua verdejante colina, como odalisca em seus aposentos”. Espantosamente, alguns insistem em levar a sério estas palavras.
Foi à minha Universidade de Coimbra que invariavelmente voltei, mesmo quando, por um tempo, fui chamado a outras funções que não a de ensinar. De todas as vezes redescobri o excitante gosto de entrar na sala de aula, de encarar um grupo de alunos, alguns deles curiosos, outros nem tanto, e de enfrentar o desafio: esse que consiste em comunicar o entusiasmo que tive, tenho e terei, pelo ritmo de um relato ou pela harmonia de um verso. Parece pouco, mas é muito. Se alguma coisa de mim tiver ficado em algum dos incontáveis alunos que pelas minhas aulas passaram, então a missão está cumprida, a última lição faz sentido e tê-la-ei merecido.
Mas vou continuar. Enquanto tiver um romance para ler, um poema para sentir, um Eça para redescobrir e ânimo para o fazer, ouvirei as vozes e ignorarei os ecos. Não me encerrarei na torre, porque, ai de mim!, não tenho a estatura de um Montaigne e nem cultivo, como D. Francisco Gómez de Quevedo, a vocação para o retiro de quem vive “en conversación con los difuntos”, escutando “con mis ojos a los muertos.”
No meu ano jubilar tenho o júbilo, et pour cause, de sentir e de dizer: a luz incerta do pouco que sei é razão bastante para continuar a devassar a imensa escuridão do que não sei. Por agora, fico por aqui. Mas o caminho não acabou, como sugeriu, no final da sua Viagem a Portugal, o meu outro Eça: “É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já”.
Coimbra, 28 de setembro de 2020
Carlos Reis
(Mensagem lida no final da última lição)
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