JORNALISMO EM DESTAQUE

485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Do poeta, escritor, jornalista, colunista do jornal Globo, Luís Fernando Veríssimo - MILES E JULIETTE


 MILES E JULIETTE

Não sei se existe uma tradução em português da autobiografia do Miles Davis. Imagino que a questão de como traduzir o adjetivo “motherfucker”, que Miles usa para qualificar amigo ou inimigo e homem ou mulher, tenha dissuadido tradutores em potencial. Miles distribui “motherfuckers” do começo ao fim do seu livro. Só poupa uma pessoa, a cantora Juliette Gréco, que morreu há dias, com 93 anos de idade, e só não foi sua namoradinha parisiense porque ninguém ousaria chamar a musa do existencialismo de “namoradinha” de quem quer que fosse. 

Miles e Juliette tiveram não um namoro, mas um tórrido romance. Miles conta que caminhavam abraçados pela beira do Sena e, como nem ele falava francês nem ela falava inglês, passavam o tempo se beijando. Recomeçavam o romance sempre que Miles ia a Paris, como na vez em que foi convidado pelo diretor Louis Malle para improvisar a trilha sonora do seu filme Ascensor Para o Cadafalso. Uma vez, se reencontraram em Nova York. Juliette fora contratada para atuar num filme americano baseado num livro do Hemingway e os produtores a colocaram no hotel Waldorf-Astoria, onde seria assinado o contrato. Miles levou o baterista Art Taylor na sua visita a Juliette no hotel grã-fino, e os dois causaram grande sensação – que Miles descreve com evidente prazer – na sua passagem pelo saguão, vestidos, segundo o próprio Miles, como gigolôs do Harlem, entre caras brancas espantadas.

Um companheiro constante do casal nos cafés e porões do Quartier Latin era Jean-Paul Sartre. Foi Sartre quem sugeriu que Miles e Juliette se casassem. Subentendido na sugestão de Sartre estava o convite para Miles ficar morando em Paris, ou pelo menos na Europa, como já faziam tantos músicos afro-americanos, para fugir do racismo dos Estados Unidos, entre outras coisas. Americanos autoexilados em Paris constituem, há anos, uma categoria artístico-literária que se solidificou num clichê, que persiste. Miles não aceitou a proposta do “motherfucker” Sartre de se mudar para Paris e viver com Juliette como num clichê. Passeios e beijos pela beira do Sena em visitas esporádicas lhe pareceram uma ideia muito melhor.

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

Sem comentários:

Enviar um comentário