O MEDO
A baía de
Angra estava apinhada de barcos. Negros, compridos, quase todos estrangeiros,
tinham acudido ao pedido de socorro das autoridades portuguesas para
transportarem sinistrados de São Jorge para a Terceira. A crise sísmica desse
ano de
1964 estava a ser muito violenta, freguesias inteiras sentiram o
estremecer da terra, as casas abateram-se ao poder e à força da energia imanada
das profundezas da ilha.
Senti
medo. Não tanto por mim, na irresponsabilidade dos meus 12 anos, mas pelos
outros. Talvez porque me meti na pele dos que vi desembarcar no Cais da
Alfândega, famílias inteiras de rostos tristes, olhos rasos de lágrimas, braços
atulhados com sacos e agasalhos. Eram da minha idade alguns deles, muitos eram
idosos e bastantes crianças. Pessoas de Angra abriram as portas de suas casas e
acolheram, durante semanas, os jorgenses que perderam teres e haveres.
Os
açorianos, de certo modo, habituam-se aos sismos quando as crises se prolongam,
como foi a de 1964 e outras que se seguiram. Não porque se lhes perderam o medo
ou o respeito mas simplesmente porque se vão acostumando aos tremores e
reconhecendo as suas características. Ficou famosa uma estória que bem pode
descrever o que acabei de dizer:
Numa
freguesia de São Jorge, um grupo de cientistas, que se encontravam na ilha a
estudar o fenómeno sísmico, reuniu-se numa “venda” para trocarem impressões
enquanto almoçavam umas sandes do famoso queijo produzido na Cooperativa local.
Numa mesa ao lado quatro velhotes jogavam uma partida de sueca, bem puxada ,
daquelas de fazer estralar os nós dos dedos. Repararam os engenheiros que mal
sentiam um dos constantes tremores, um dos velhotes, mesmo sem tirar os olhos
do naipe das ensebadas cartas, dizia: “Olha, este foi de grau 3!”. E
continuavam, impávidos, o entretido jogo. Dali a pouco, quando aconteceu novo
abalo, outro dos jogadores fez notar: “Ó Manel, este já foi mais fortinho, deve
ter sido perto de 4!”.
Os
técnicos, admirados com o grau de precisão dos idosos, trocavam olhares de
espanto. Um deles abeirou-se da mesa e, delicadamente, perguntou como é que
eles tinham aprendido essa técnica, como conseguiam fazer tão acertados
palpites. O Ti Manel, o mais falazão deles, sem tirar o “Santa Justa” do canto
da boca e enquanto batia com o Ás de trunfo no tampo da mesa, deu a simples
resposta: “Sabe, senhor doitor, isto é conforme o cagaço!”
Todos, de
uma maneira ou outra, sentimos medo. A forma de o controlar é que varia de
pessoa para pessoa. Tenho a certeza que nunca seria capaz de vestir uma jaqueta
enramada e saltar a barreira de uma praça para enfrentar um touro, de caras.
Deixo isso para os mais valentões, embora o facto de ter andado, e não foram
poucas vezes, a cinco ou seis metros de altura, caminhando numa prancha de
trinta centímetros de largo para pregar pesadas placas de gesso nos tetos de
casas, talvez me possa conceder o estatuto de, quando muito, artista de circo!
A necessidade de ganhar a vida por vezes obriga a práticas perigosas, onde o
seguir o mínimo de normas de segurança não pode ser descurado.
Vejo,
atualmente, rasgos de medo nas caras e nas atitudes de algumas pessoas. Nas
redes sociais é frequente lerem-se comentários a versarem o mesmo tema: as
pessoas estão assustada e o motivo mais badalado é, sem dúvida, a imprevisível
atuação do governo deste país. Estamos todos de pé atrás, sempre à espera de
novas manobras, novas leis que, indubitavelmente, não nos vão trazer muita
calma ou bem-estar. Estas cabeças (mal) pensantes que seguram as rédeas desta
carroça não estão muito preocupadas no bem comum mas somente na segurança dos
ricos e poderosos. Aliás, são eles todos ricos e poderosos, nunca um governo
americano teve nas suas cúpulas tantos milionários e multimilionários com este
que nos (des)governa.
Tal como
os jogadores de sueca da “venda” em São Jorge, estamos também a cair numa forma
de acomodação, de apatia generalizada que poderá ter fins nefastos. Vamo-nos
habituando a esta tremelicante caminhada, a este jogo de palavras, de mentiras
e de falsidades com que somos confrontados todos os dias e ainda acabamos por
aceitar algumas como verdades, de tanto as ouvir! Talvez seja mesmo esse o
propósito dos novos governantes, figuras que já demonstraram que não se poupam
a meios sujos e até ilegais para conseguirem tapar os olhos ao eleitorado e
alcançarem os seus fins. E aqui, claro, não se podem excluir nenhuma das
facções deste baralho político, em certos aspectos são tão culpados como os
Republicanos.
Confesso
que me posso incluir no lote dos assustados. Tenho receio pelo que poderá
acontecer com o Medicare, sistema a que passarei a pertencer dentro de poucas
semanas; tenho sérias preocupações com o futuro dos meus netos, das
dificuldades que poderão enfrentar não só nos sistemas escolares mas também nos
perigos que os esperam com a degradação do meio-ambiente; preocupa-me a
qualidade de vida dos americanos em geral, com a hipótese de se verem
confrontados com piores planos de saúde, menores possibilidades de acesso a
doutores e hospitais, escolas degradadas e aumentos do custo de vida sem a
devida compensação nos salários e planos de reforma.
Sei que a
nossa vida não se pode comparar a uma jogatana de sueca, acompanhada por uns
cálices de aguardente ou angelica. Mas gostaria de ter a esperança que os
abalos, as crises a que estaremos sujeitos no futuro, sejam as de origem
natural ou sejam as que nos caírem no regaço criadas pelos humanos, venham a
ser resolvidas com serenidade e com o único objetivo do bem comum, não em
benefício de uma minoria ou da classe política, já por si beneficiada por todas
as formas de nepotismo imagináveis.
Ao fim e
ao cabo, o que precisamos é de um governo no qual todos possamos confiar.
Com menos
mentiras, menos sujidade e mais honestidade, para que não tenhamos que fazer
palpites à vida usando a mesma técnica do Ti Manel de São Jorge.
(foto
#1-Sinistrados jorgenses à espera de serem deslocados para outras ilhas, de um
documentário Pathé
foto #2-
Capa do jornal Diário Insular, Fevereiro de 1964 enviada por Hélio Vieira)
Lincoln,
Ca. Março 27, 2017
Sem comentários:
Enviar um comentário