"LITTLE
BIG WOMAN"
O filme “Little Big Man”, dirigido por Arthur Penn em
1970, com soberbas interpretações de grandes atores como Dustin Hoffman e Faye
Dunaway foi um daqueles que me marcou muito na minha juventude. Um clássico do
cinema, narrava-nos numa maneira épica e com nuances entre a comédia, o drama e
a aventura, a história de Jack Crabb, contada por ele próprio já com 121 anos a
um repórter que o foi visitar à residência de idosos onde estava albergado. É
possível que o nosso Jack tenha sido um dos maiores mentirosos que palmilhou o
West Americano, já que as suas memorias de como foi adoptado pelos índios
Cheyenne, os seus casamentos, a amizade que manteve com Wild Bill Hickok,
os encontros e maroscas que inventou para enganar o famoso e ambicioso General
Custer ao ponto de o fazer perder a batalha de Little Big Horn onde os
indígenas aniquilaram a Cavalaria americana, são, digamos, difíceis de engolir.
À semelhança de outros filmes como “Dancing With
Wolves” e até o mais recente “Avantar”, este último já com temas e técnicas bem
mais modernas, somos confrontados com narrativas que nos mostram a maneira
bárbara e estúpida como, em prol do desenvolvimento, povos e culturas são
dizimadas ou absorvidas de tal modo que pura e simplesmente desaparecem,
algumas sem deixarem grande rasto histórico. Já faço parte do tecido humano
californiano há mais de 33 anos e no meu deambular de norte a sul pelo Estado
Dourado muito raramente encontro alguém cuja fisionomia me indique que possa
ser de um nativo americano. Reconheço que a cultura e costumes indígenas está
bem documentada em museus e centro descritivos mas não é a mesma coisa
que poder conviver directamente com as pessoas e ouvir delas as
lendas e cânticos dos antepassados. Aqui à minha volta vivem Chineses, Paquistaneses,
Indianos, Filipinos, Mexicanos, Iranianos, dois ou três casais de Portugueses,
mas, Índios Americanos... nem um que seja.
Num destes serões do feriado do Thanksgiving, por
sinal uma festividade também com grande relação com o intercâmbio entre os
povos autóctones e os recém-chegados emigrantes, deliciei-me a ver de novo o
“Little Big Man” e saboreei com outros olhos (a gente às vezes não diz que come
com os olhos???) principalmente a relação de amizade que o personagem do filme
manteve com o seu avô adoptivo, o velho patriarca Old Lodge Skins, interpretado
com grande classe pelo Chefe Dan George, líder da Nação Tsleil-Wantuth em North
Vancouver, Canada, que, além de ser um reconhecido ambientalista --
–dizia que “We are as much alive as we keep the earth alive”—foi também actor
de cinema e teatro. As cenas finais do filme são muito comoventes, o ancião
pediu ao neto que o levasse ao cimo da montanha porque previa que a morte
estava a chegar e era hora de fazer a última dança, orar os agradecimentos
devidos aos deuses e enfrentar a batalha final como um “Human Being” que se
orgulhava de ser.—Para os Cheyennes, eles é que eram “Humanos”, os demais não
passavam de “Brancos” ou “White People”. Mas não era a hora do Chefe Old Lodge
Skins deixar este mundo e juntar-se aos seus antepassados, a chuva que começou
a cair despertou-o de novo para a realidade e deu-lhe azo a que mostrasse o seu
refinado sentido de humor, ironizou que as artes mágicas dos deuses por vezes
não funcionam e que o melhor era regressar ao conforto do seu tipi e ao
consolo das meiguices das suas três esposas.
Foi esta questão do sentido de humor do Chefe
que me trouxe de volta á realidade dos nossos dias, penso que é coisa que não
abunda muito nas nossas “stressadas “ vidas modernas. Numa das paredes da
Residência de Idosos onde eu vou visitar o nosso “Anjo” --- de nome Angelina,
mais pura e verdadeira que até o bom do chefe índio—está pintada uma
frase que não me canso de ler... “Our five senses are incomplete without the SIXTH, a
sense of humor”. Talvez seja uma ironia, uma frase
destas num lugar onde as risadas e gaitadas que se ouvem são geralmente mais
esgares físicos provenientes da degradação mental dos utentes do que provocadas
por alguma piada de bom gosto ou cena de filme cómico. Mas lá está, pelo menos
para recordar aos que ainda têm um pouco de massa cinzenta em bom estado, que o
saber rir, nem que seja de nós próprios, é tão importante como o comer com
gosto, o cheirar e o sentir.
O Chefe Old Lodge Skins teve a capacidade de
poder escolher onde queria ou devia morrer, para os Cheyennes a morte era
considerada como uma ocorrência natural da vida, algo que era aceite e nunca
temido. A morte não era uma derrota, mas sim o destino comum a todos. Por isso
ele a foi enfrentar como um bravo guerreiro para o cimo da montanha onde o seu
corpo teria a ultima morada. Nas nossas sociedades modernas, as casas de idosos
são as montanhas onde, na grande maioria dos casos, os nossos idosos são
“depositados”, como que guardados em prateleiras à espera de morrer, muitos sem
a mínima possibilidade de escolha e sem o raciocínio que lhes permita decidirem
como passar os seus últimos dias.
Nas regulares visitas que faço ao Lar de Idosos de San
Leandro procuro entrar sempre com um sorriso na cara, tento cumprimentar todos
e todas que vou encontrando sentados nas suas cadeiras de rodas a deambular
pelo corredor, embora muitos deles só me retribuam com um olhar frio, gelado e
impessoal. Alguns estendem-me as mãos como que a solicitar um carinho, um
contacto físico que lhes anime a alma, outros devolvem-me o sorriso mais com os
olhos do que com os lábios (afinal, agente não só “come” com os olhos como
também pode “sorrir” com eles, a tal inter-relação entre os SEIS sentidos).
Imagino que gostaria de saber algo mais acerca das vidas que já se lhes vai
escapando entre os dedos finos das mãos tracejadas com negras veias mas
muitos já não têm capacidade para me dar uma resposta coerente e ajuizada. A
senhora Ortins, da Graciosa, já lá está há dez anos em estado que é mais perto
de coma do que de outra coisa, assim como o sr. Tony Silva, com a sua careca
bem rapada e alva de neve, a condizer com brancura dos lençóis que o cobrem. A
Eulália L. ainda tem certa mobilidade física mas não consigo tirar nada dos
seus olhos atentos que me fixam como setas e não são capazes de transmitir aos
lábios mais do que uns leves gemidos... e lá está o Sidney, um afro-americano
que passa o seu tempo a cantarolar alguma conversa que teve com a que presumo
ter sido a professora que o ensinou a ler e repete, repete todo o santo dia as
mesmas palavras... e Miss Dorothy, o pesadelo de todos os atentos e
solícitos empregados que já têm medo das lenga-lengas desbocadas dela, a todos
trata mal usando as mais arrepiantes obscenidades dignas dos mais nojentos
arruaceiros... e a Sara, filha de Madeirenses, que agora já quase nem me
conhece mas que meses atrás me contou que a caixinha de música que adorna a sua
mesa de cabeceira foi oferta do marido, que quando era novo lhe oferecia coisas
assim “quando queria uma brincadeira”... Ela deve ter lido o tal dito na parede
!
No meio de tudo isto está o nosso Anjo, a pessoa mais
sweet, mais doce, mais simpática que alguma vez passou por aquela casa, como
não se cansam de me dizer todos o que a cuidam com extremo amor. Infelizmente
já não tem o discernimento e a força física para tomar conta de si, embora
ainda nos reconheça e não perca uma oportunidade para nos deixar saber que não
quer incomodar e que nunca nos esqueçamos de pagar as suas refeições (está tudo
pago pelo MediCare, Sistema Nacional de Saúde...) porque “não quero ficar a
dever nada a ninguém”. A sua extrema educação e carinho foi apanágio que
cultivou toda a vida, nascida e criada no Corpo Santo no seio de família
humilde mas respeitada por todos, era a mais nova de uma prole de sete filhos.
Esteve para se chamar Maria da Conceição mas, felizmente, o Ti José “Seguro”
esqueceu-se do nome quando a foi registar e pôs-lhe o de Angelina, que lhe
ficou a calhar bem melhor, para completar a sua angélica maneira de ser. Ao
contrário do Jack do filme, nunca mentiu na sua vida, ao contrario da Miss
Dorothy, nunca da sua boca saiu palavra desapropriada ou ofensiva fosse para
quem fosse, ao contrario da Sara, nunca pela cabeça lhe passaram pensamentos
censuráveis, mas sempre a conheci, tal qual Chefe Old Lodge Skins, com um
afinado sentido de humor com que escondia as amarguras de toda uma vida
dedicada à família e aos amigos. Não foi muito afortunada em muitas alturas mas
de tal nunca se queixou, nem mesmo quando estava doente. Nem os mais valentes
guerreiros Cheyenne se poderiam comparar em determinação e honestidade a esta
pequena grande mulher.
Mas se entro no lar com um sorriso, já não consigo
sair de lá e fazer a viagem de 10 Km que o separam da minha casa sem um grande
aperto na garganta, uma tristeza negra e pesada por cima das costas, um
silêncio interior que fala mais alto que qualquer palavra. Porque sei que ela
lá ficou, deitada, em silêncio também, com a pouca vida que lhe resta embalada
pelo ténue ritmo do seu puro coração. Já trepou a montanha da vida, agora
espera pacientemente, por melhores dias.
Como muito bem disse um amigo e poeta Graciosense,
“... É AINDA O BATER DO CORAÇÃO QUE MAIS FAZ DOER O
SILÊNCIO”.
Obrigado, Angelina, pela tua vida.
João Bendito
Hayward, Ca. Nov. 12, 2010.
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