O treinador nacional e o estrangeiro
Manuel Sérgio
Tratemos, hoje, de
um tema que, sem dar ares de adivinho, parece manter alguma actualidade: qual o
melhor treinador, para o futebol (ou o basquetebol, ou o andebol, ou o
voleibol, etc.) de um país, o treinador nacional ou o estrangeiro? Em Portugal,
a concluirmos pelo enlevo que certas pessoas sentem por tudo o que chega da
estranja e o pessimismo demolidor que lançam sobre os homens e as coisas de
Portugal, os treinadores portugueses são muitas vezes minimizados, com
enfatuada ironia.
A enriquecer esta tese, adianta-se, de fisionomia
aberta e jubilosa, o facto incontroverso de, com Luiz Filipe Scolari, Otto
Glória, Bella Guttman e Tomislav Ivic, o futebol português ter alcançado êxitos
retumbantes (e o mesmo poderia dizer doutras modalidades, como, por exemplo, o
voleibol). Eles instigaram-no a novos métodos que nele se repercutiram, durante
anos. Mas por que se esquece repetidamente que é nosso o que, há bem pouco
tempo, foi considerado o melhor treinador do mundo e ainda Fernando Vaz, José
Maria Pedroto, Artur Jorge, Carlos Queirós, Jorge Jesus, Paulo Bento, Manuel
José e outros?… Num país de velhas tradições e de longa caminhada histórica,
até no futebol gostamos de ser colonizados! E, como veremos, não
há razão para mais um complexo de inferioridade.
Mas a pergunta continua teimosamente de pé: qual o
treinador que melhor serve o futebol de um país, o nacional ou o estrangeiro?
Em igualdade de circunstâncias, o nacional, indubitavelmente! Ao treinador estrangeiro,
em terra alheia, sem o domínio da língua nativa (e não é linguagem o desporto?)
e desconhecendo o futebol como expressão de uma cultura que lhe é estranha –
escasseiam-lhe, normalmente, ao nível do agir e do inteligir, uma larga soma de
dados imprescindíveis ao exercício da sua profissão… longe do seu país!
É uma antiga questão esta da existência ou
não-existência de características nacionais, no futebol. De facto, que
realidade traduz a designação brasileiro, inglês, soviético, aposta ao vocábulo
futebol? Há futebol brasileiro, ou futebol no Brasil? Há futebol inglês, ou
futebol na Inglaterra? Há futebol coreano, ou futebol na Coreia? Tentemos
estabelecer a noção de futebol: ele é um desporto colectivo, com as regras por
todos conhecidas e dependente do génio individual dos jogadores, da capacidade
de liderança do treinador-principal e da organização global dos clubes.
Mas os elementos raça, geografia, língua,
tradições, cultura, etc. singularizam o futebol dos diversos países?
Indubitavelmente! Por isso, existe o “futebol sambado” do Brasil, o “futebol
atlético” dos ingleses, o “futebol racionalista e geométrico” de alguns países
da Europa Central. O futebol também interpreta o real, à sua maneira; também
ele é uma visão do mundo, existindo no plano do conhecimento não
consciencializado; também ele resulta da sensibilidade peculiar de um povo. O
futebol pode fazer suas as palavras de Ortega y Gasset: eu sou eu e a minha
circunstância!
Tudo isto, para concluir que aposto nos treinadores
nacionais, no cotejo com os estrangeiros, para dirigir e orientar as nossas
equipas de futebol (ou de qualquer outra modalidade desportiva). Desde que
sejam treinadores que aliem uma prática incessante (de treinadores,
logicamente) a uma teorização rigorosa. A grande mensagem que o José Mourinho,
Manual Jesualdo Ferreira, o Carlos Queirós, o Nelo Vingada, o José Peseiro, o
Mariano Barreto, o Manuel Machado, o Carlos Carvalhal, o Rui Dias e outros mais
licenciados em Desporto pretendem transmitir ao futebol português (e não só) é
esta: também é preciso estudar, para se obterem vitórias, no futebol. Também
aqui a teoria e a prática deverão existir em função uma da outra, visando não
só um saber, mas uma sabedoria.
Recordo a terminar Cândido de Oliveira, Fernando
Vaz, Mário Wilson, Manuel Oliveira, José Maria Pedroto, Artur Jorge, Jorge
Jesus, Manuel Cajuda que, sem um curso universitário de Desporto, anunciaram, à
sua maneira, que a teorização é indispensável à prática de treinador de futebol
– o que fazem os que tiveram, como professores, o Manuel Jesualdo Ferreira, o
Mirandela da Costa, o Carlos Queirós e o Nelo Vingada, no ISEF de Lisboa, e o
Vitor Frade, no ISEF do Porto!
No entanto, é de exigir aos licenciados que
escutem, com humildade, os que levam anos e anos de futebol. É que também o
futebol se teoriza, no quadro de uma inegável dimensão histórica, social e
política.
Ocorre-me o conceito de “prática-teórica” de Louis
Althusser, ou mesmo a “teoria-prática” de Gyorgy Lukács. Por mim, quero
denunciar, tanto o idealismo da “teoria pura”, como o pragmatismo de uma
prática acéfala; tanto uma dialéctica unicamente de categorias e de conceitos,
como a “consciência espontânea” (altamente tributária da tradição e do passado)
dos que não estudam e abdicam do papel orientador da teoria.
*Antigo professor do Instituto
Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel
Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e
Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.
Notabilizou-se como ensaísta do
fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior
de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus
de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.
Esse texto foi mantido em seu formato
original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.
Para interagir com o autor: manuelsergio@universidadedofutebol.com.br
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