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485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

domingo, 28 de janeiro de 2018

Da Califórnia - De João Bendito



BRINCADEIRAS DE CRIANÇA (Parte 1)


BRINCADEIRAS DE CRIANÇA

(PARTE 1)

DE CANAS, CANIÇOS E CANOAS

Outro dia, ao limpar o pó de uma das prateleiras dos armários do meu pequeno escritório/refúgio, deixei cair no chão um carrinho de bois de madeira puxado por uns pacatos animais feitos de socas de milho. Partiram-se as patas dos bovinos, tive que as voltar a colar com super-glue, uma invenção moderna para substituir a nossa antiga goma arábica, vendida a 1.00 escudo o frasquinho nas papelarias da nossa cidade. Ao lado do dito carrinho ainda ali tenho um pião, uma piorra, uma saquinha com uma dúzia de bolinhas de vidro além de outras bugigangas que fui guardando dos meus tempos de menino.

O que está a fazer falta é uma gaita de cana ! E eu que nem sabia que nalguns lugares da nossa ilha eram conhecidas por “NUN-NUNS” ! Fiquei com o meu dicionário mais rico à custa do folhetim dos domingos que o LFG faz o favor de pôr à nossa disposição e que eu tento não perder. Gaita de cana, flauta de cana, está bem, agora nun-nuns, esse nome eu não me lembro. Talvez por ser menino da cidade, passou-me ao lado essa referência aos maravilhosos instrumentos que um afiado canivete, de preferência daqueles que um tio calafona tinha oferecido, bem manipulado por mãos habilidosas , conseguia construir usando um pedaço de cana de bambu que era cortada com muito cuidado para só deixar intacta a pelica que ía vibrar com o nosso sopro e tentar imitar o José “Brincão”, afamado trompete da banda da Serra da Ribeirinha.
Mas as canas de bambu serviam para muito mais, eram o material ideal para as pirâmides de suporte aos tomateiros e ao feijão-de-trepar, podiam servir para aguentar as galinhas no curral quando alguma parede estava meio esburralhada, eram procuradas e bem amanhadas pelos nossos pescadores tanto profissionais como amadores para trazerem à borda da traineira as grandes albacoras ou ao de cima do calhau uma veja bem vermelha ou um carapau prateado e eram a matéria prima que as donas de casa usavam para segurar no ar as vergas onde penduravam a roupa a secar ao sol. E não foi só uma ou duas vezes que minha mãe me partiu uma cana nas pernas ...” para aprenderes que dá muito trabalho lavar a roupa na pia para que vocês a venham sujar agora a jogar ao futebol debaixo das vergas. Vão mas é jogar para o campo do Seminário!”.
As inesquecíveis férias de verão em Santa Cruz, Graciosa, proporcionaram ao menino da cidade mais uma importante descoberta do uso das canas de bambu nas brincadeiras da rapaziada nas quentes tardes de Agosto. Os meus companheiros de correrias, quase todos filhos de pescadores e baleeiros, eram exímios construtores de lanchas e botes onde eles imitavam as aventurosas caçadas aos cachalotes que os progenitores perseguiam nas águas do canal debaixo do aviso e orientação do Mestre António “Escalador”, vigia do Monte da Senhora da Ajuda. Era muito simples o modo de fazer os botes, bastavam duas canas unidas nas pontas com um pedaço de espadana formando uma oval, e pronto, o “Carapacho” puxava o bote “São Gabriel”, a “Estefânia Correia” puxava o “Santa Cruz” e estava montada uma caçada que seguia à risca todas as peripécias que a canalha já estava farta de ouvir contar aos adultos em momentos de ócio sentados, ao anoitecer, nos degraus dos armazéns do Sr. Eurico ou nas banquetas do Café do Nelson “Rato”.
Ainda tentei num verão graciosense introduzir aos meus amigos uma brincadeira diferente : “porque é que a gente não brinca aos toiros ?”, disse-lhes assim como quem não quer a coisa. Ainda nessa altura a Graciosa não tinha sido contaminada pela febre taurina dos terceirences, podia ser que a minha sugestão surtisse efeito. Fomos todos para o largo do Adro Santo, mesmo acima do porto da Calheta, lugar que depois de alguma discussão foi considerado como o mais adequado porque as paredes não eram muito altas e o piso de terra batida ao redor da ermida seria mais favorável a alguma eventual aterragem de joelhos. Só que a tourada tornou-se numa grande “maloada”, tanto o Carlos Alberto “Maracoto”, o Rubem “Bala” ou o Aluízio não davam nem para touros nem para capinhas, além de que levei um grande raspanete da santa da avó Delminda porque, ao imitar o “João dos Ovos”, lhe parti o seu guarda-chuva preferido, oferta que o tio Celestino tinha trazido de São Salvador da Baía. E as canas de bambu que foram usadas como foguetes e bombons na tourada, voltaram a ser recicladas para mais um bote baleeiro!
Durante os tempos de crescimento das videiras, avô Guilherme passava horas a meter estacas de cana de bambu a levantar as parreiras do chão, uma trabalheira que ajudava a produzir o melhor vinho que a Graciosa já deu ao mundo e que vinha quase todo a bordo do “Espírito Santo” parar à Terceira para ser vendido na loja do seu estimado genro. As estacas saíam das mãos do Ti João, um velhote que havia precocemente perdido uma perna e então passava o tempo a cortar estacas ou então a aparar as falhas em pequenos pedacinhos que Tio Nelson usava para os seus gelados feitos com refresco “Royal “num dos poucos frigoríficos que havia em Santa Cruz.
Parece-me que nunca tive a sorte de participar numa matança de porco na ilha Graciosa mas as que se faziam na nossa casa da Miragaia, essas eu nunca mais vou esquecer. Não sei se estarei muito errado se afirmar que talvez foram das últimas matanças que se fizeram dentro do perímetro da cidade, eram um grande orgulho para o meu pai que se esmerava na preparação, desde o forte banco de madeira até aos melhores ingredientes para as morcelas e torresmos, tudo era arranjado ao pormenor. Para mim também era um dia especial, começava com o “tomar o café” com os homens grandes .... o cheiro do café de cevada e o gosto do queijo de São Jorge .... , seguia-se a caminhada até aos cerrados das Mónicas para trazer o condenado bácoro até casa e então estava tudo a postos para o “Ti Jaquim do Continente”, um Alentejano importado para o Posto Santo, fazer uso da sua perícia de bom matador. O pobre do animal não tinha safa nenhuma, quando o António Fernando e o António “Sinal” lhe botavam o gadanho para o segurar no banco, ele só tinha era que dar os últimos suspiros. Não terminava o dia sem que houvesse um joguinho de futebol com a bexiga do defunto, cheia de ar assoprado com uma palhinha de trigo, a servir de bola. À noite, lá estava o infeliz pendurado pelas patas traseiras e com o corpo em exposição a quem quisesse ver os quatro dedos de toucinho separados por pedaços de canas de bambu (cá estão elas outra vez!) cortadas em forma de “V” nas pontas.
Era, e talvez ainda seja, impressionante o uso que o nosso povo dava às canas de bambu, não só nos afazeres diários da agricultura e das pescas mas também para divertimento e brincadeira dos rapazes. As canadas e caminhos da nossa terra decerto que viram bandos de “cavaleiros” montados em canas ainda com alguma ramagem na ponta a imitar os puro-sangue Lusitanos das touradas de praça, alguns deles possivelmente empunhando uma ruidosa ventoinha feita com folha de tremoço na ponta de uma aguçada caninha. Tenho a certeza que nas freguesias das nossas ilhas a imaginação e habilidade manual dos jovens de outrora terão inventado muitos outros brinquedos não só de canas de bambu, mas também de outros produtos naturais ao seu dispor.... qual foi a moça que nunca brincou com uma boneca de folha de milho ou o rapaz que nunca fez navegar numa poça do calhau um barco feito a canivete dum pedaço de casca de pinheiro?
Hoje tive a sorte de passar umas horas na companhia do Dominic, o meu neto agora já com três anos. No meio da abundância de carrinhos, macacos, jogos, enfim um caixote cheio de brinquedos adequados à idade dele, lá fui tentando introduzir no nosso retoiço umas coisas que não precisassem de baterias e fossem fáceis de construir. Marchámos a imitar mosqueteiros com capacetes de papel, fizemos uma armada e uma esquadra de aviões e barcos também de papel, desenhámos a nossa cara com giz numa pedra de ardósia, apanhei o meu pião na palma da mão e pu-lo a rodar na sua pequena mão, o que lhe causou uma risada hilariante, esfregámos no chão áspero de cimento um caroço seco de damasco e fizemos um apito que arreliou a mãe e a avó com o som estridente....
Só não tivemos a sorte de puder construir uma gaita de cana, não tenho esse género vegetal aqui no meu quintal. 
Mas vou tentar arranjar uma, o Dominic vai perder o fôlego a assoprar!

Hayward Cal. Julho 24 2010.
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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