Os usos do futebol
Manuel Sérgio
Desde sempre a filosofia duvidou. A dúvida é o seu gesto instaurador.
Por isso, com algumas exceções, nela tudo é anti-ordem e anti-poder. O Futebol,
ao invés, procura sofregamente o apoio do Ter e do Poder e expande-se,
desenvolve-se, com Ordem e Medida. Por outro lado, também o Ter e o Poder
precisam do futebol para legitimar-se. De fato, as seleções nacionais de
Futebol, as equipas mais representativas dos vários países representam
interesses desportivos mas, sobre o mais, interesses midiáticos, interesses
comerciais, interesses publicitários, interesses políticos. Os desempenhos das
seleções e dos clubes encontram-se intimamente ligados aos desempenhos dos
serventuários do grande capital. Chegou, portanto, a altura de questionar se o
carácter eminentemente formativo do futebol (como desporto que é) não
desaparece diante da lógica de outros interesses incapazes de assumir uma intervenção
pedagógica global. É que o Ter e o Poder são declaradamente despóticos, ou
seja, têm uma verdade indiscutível e o futebol, que os serve, transforma-se na
expressão corporal dessa verdade.
O futebol concorre mesmo à
interiorização, em cada dos seus agentes, dos vereditos imperiais do déspota.
Não é por acaso que as práticas dopantes, nele, permanecem; não é por acaso que
o alto rendimento é sempre acompanhado de produtos farmacêuticos, os mais
sofisticados; não é por acaso que são, cada vez em maior número as doenças
súbitas que atormentam os jogadores de futebol; não é por acaso que o desporto
(e portanto o futebol) é uma atividade física ou, segundo alguns, um meio de
educação física (e quanto mais físico o desporto for, mais acéfalo e acrítico será
e mais servilmente representará a vontade do Ter e do Poder).
Por sua vez, o treinador, sempre que
se refere aos jogadores que trabalham sob as suas ordens, repete, de forma
exaustiva e massacrante: os meus jogadores. Como se, de fato, os jogadores fossem
mesmo dele! Mas não é assim que pensa o déspota quando exclama: “meu povo”? O
treinador, para ser um profissional exemplar, para a ideologia dominante, só
tem de imitar o déspota. E assim como o Poder diz trabalhar para o povo, para
mascarar a sua função constitutiva, a repressão – também os treinos, os
estágios, as competições se resumem ao exercício de uma soberania astuciosa,
que controla os atletas como quem comanda singelos títeres. Não são os agentes
do futebol que fundam o futebol, mas o Ter e o Poder, com a sua libido
dominandi, geradora de violência. De fato, a lei e a ordem, no futebol, nada
têm a ver com a Justiça, mas com a delimitação do espaço onde se movimentam o
senhor e o servo, dentro de uma competição insanável, que forma o devir histórico
do futebol, de há cem anos a esta parte.
O pensamento único neoliberal (a
ideologia dominante) é o que faz, no futebol e no mais: um mundo de riqueza,
cercado de pobreza, por todos os lados, onde funcionam a liberdade, o livre
comércio e o livre mercado, tão intimamente associados que delas surge,
dominador, o capitalismo neoliberal. Que admira que, também no futebol,
coexistam os ricos e os pobres, os senhores e os servos? O Real Madrid, o
Barcelona, o Bayern de Munique, o Manchester United, o Chelsea, o Manchester
City, a Inter, o Milan e poucos mais são os senhores; os demais são os servos.
Aliás, este futebol é o que gera: senhores e servos. E produz assim uma certa
imagem da essência da sociedade, onde os antagonismos, típicos do capitalismo,
aparecem como causa de manutenção do status quo. O aumento galopante do
desemprego, nos países desenvolvidos, está a empurrá-los à pobreza do Terceiro
Mundo. Entretanto, o povo delira e aplaude o futebol promovido e organizado
pelo mesmo neoliberalismo altamente competitivo que o leva à penúria e à
ausência total de segurança social…
É um truismo afirmar que o capital
capitaliza o futebol. De fato, o capital procura, acima de tudo, o lucro. O
Cristiano Ronaldo não seria tão publicitado se as suas qualidades físicas (as
outras pouco importam) não despontassem, na imprensa, no rádio e na televisão,
de mãos dadas com determinados produtos… que é preciso vender! Em nenhum modelo
invasor, ou inspirado de fora de um “ethos” livre e libertador, se descortina o
escrupuloso respeito da dignidade das pessoas e da sua capacidade de, no
desporto, serem sujeitos (ser sujeito é não sujeitar-se) e não objetos.
Ora, hoje, o futebol, preso nas mãos
férreas de um capitalismo imoral, não é uma prática libertadora e construtiva,
mas uma cilindragem opressora e destrutiva. De prática autocontrolada pelos
“homens do futebol”, no seio do futebol, passou-se a uma prática
heterocomandada longe e contra os “homens do futebol” que deixam de ser os
agentes da sua profissão, para surgirem, na praça pública, como réus de crimes
que não cometeram. De que podem acusar-se o Dunga, o Carlos Queirós, o Maradona
e outros mais, treinadores vacilantes e de muito pouca eficácia, no
Mundial-2010? Na ausência de liderança? Na canhestra leitura de jogo? Na
incomunicabalidade treinador-jogadores? São ítens a sublinhar, designadamente
pelos presidentes das respectivas federações, que escolhem e contratam os
treinadores. Mas… pouco mais! Se é pacóvio apontar qualquer determinismo
sociológico, nesta “floresta de enganos” que é o desporto (e portanto o
futebol) também não nos é lícito julgar a competência de um profissional, como
se na totalidade, que é uma equipa, fosse ele o único elemento a ter em conta.
O quarteto mais avançado da seleção
argentina, no Mundial da África do Sul (Tevez, Messi, Higuain, Di Maria), tem
admiráveis jogadores de valor intacto. Diante da seleção da Alemanha, nas
quartas de final, pareciam simples principiantes, submissos pela força e a
robustez dos teimosos lutadores que são Lahm, Schweinsteiger, Khedira e os
demais das linhas recuadas e a velocidade e os primores técnicos dos jogadores
da linha avançada que, quando disparavam a correr, bebendo o vento, quais
Pégasos imparáveis, não havia argentino que os segurasse. Será o Maradona o único
e o principal culpado, pela derrota? E será o Joachim Low a causa, excluindo
outras, do jogo triunfal da Alemanha, no dia 3 de julho de 2010?
Entre informar e imbecilizar a
distância é mínima e não se analisa o trabalho global de uma equipe desportiva
senão dentro do todo que ela é e do todo onde ela se insere. Os prodigiosos
progressos da genética e da biologia molecular permitem-nos conceber os laços
indestrutíveis entre a física, a química e a biologia, dado que é pela
organização, e não unicamente pela matéria, que a vida se distancia do mundo
físico-químico. Por isso, diante do inêxito do futebol brasileiro, ou do
português, no último Mundial, há que levantar as perguntas seguintes: as
entidades que superintendem, no futebol brasileiro e no português
prepararam-se, problematizando-se e reorganizando-se, para o Mundial da África
do Sul? E sabem os Srs. Dunga e Queirós que todo o progresso, ao nível do
conhecimento, é inseparável da consciência do erro? Onde erraram eles? O que
mais me surpreende é, em plena consciência do fracasso, predominar a tendência
conservadora, no futebol brasileiro e no português. Talvez por que o futebol se
destina, principalmente, a satisfazer as exigências do mercado.
A questão é pertinente: pode
encontrar-se num desporto absolutamente mercantilizado algum compromisso com
algo mais do que um espetáculo lucrativo? É que não conheço um capitalismo
eticamente viável. Ora, é à luz de um futebol (repito-me) totalmente
mercantilizado que é possível compreender, hoje, os usos que dele se fazem. E
termino antecipando que o Brasil será o campeão mundial de 2014 ! Por quê?
Porque nascem no Brasil os melhores futebolistas do mundo, se os avaliarmos do
ponto de vista técnico e da intuição. E, no Brasil também, há treinadores para
fazerem o resto…
*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos
principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela
Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade
Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.
Notabilizou-se como
ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do
Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do
Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de
reflexão filosófica e de poesia.
08/03/2010
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