A última lição na Faculdade
ANTÓNIO VALDEMAR
Dezembro de 1971. Perante um auditório repleto de
colegas, alunos e outros intelectuais e artistas que também lhe foram levar um
abraço afectuoso, Vitorino Nemésio proferiu na Faculdade de Letras de Lisboa a
última lição. Completava dentro de dias 70 anos e atingia o limite da idade
imposto pela lei, a fim de cessar funções docentes.
Na despedida oficial terminou com esta declaração peremptória: "Aos meus
velhos e últimos alunos, todos tão fiéis, ou então discretos censores,
comovidamente digo o meu "até à vista!""
"Diremos amanhã..."
Pois quem pode afirmar que isto não continua?"
O mestre de gerações sucessivas, o escritor e o comunicador que, ao longo de
mais de meio século, exerceu intervenção permanente através da cátedra, do
livro, dos jornais, da rádio e da televisão, não aceitava a reforma.
E não aceitou mesmo. Horas antes de ser internado no Hospital onde viria a
falecer ainda falava na Academia das Ciências sobre o centenário de Azevedo
Neves, professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, seu patrício e amigo.
Sem ter escrito o livro de memórias que todos esperávamos (e se encontram,
afinal, dispersas em crónicas, poemas, ficções e cadernos de apontamentos do
espólio) Vitorino Nemésio deixou na última lição - estou ainda a ouvi-lo - o retrato
e auto-retrato do muito do que foi e do que sonhou: "Quis ser padre,
militar, marinheiro, médico. E isto não só pelo lúdico mimetismo de infância e
da adolescência, mas por um forte imperativo de intuição e vivência de
situações humanas tópicas no contexto social em que cresci - o que já tem muito
mais que ver com a personalidade radical em crisálida do que com as suas leis
de desenvolvimento etário."
Como se definiu e como classificava a sua própria actividade de intelectual
repartida entre a escrita e o magistério: "O que fiz como poeta,
historiador e biógrafo (o género tem má fama...) já não é desta conta. Só serve
para pôr a questão: se um criador verbal pode ser professor. A tradição
italiana de Leopardi a Ungaretti - escalas à parte - diz que sim. A francesa
quase que só apresenta o caso de Valéry, ainda assim apenas chamado a uma
rubrica de Poética no Colégio de França por força do fascínio cartesiano dos
noemas formais de Monsieur Teste, que assim doutorou o modesto
agenciário de uma companhia de seguros. Sábio oficial, na família, era só o
irmão, Jean Valéry, que ainda conheci e tratei, decano de Direito em
Montpellier."
Como explicava o ensino, que leccionava em moldes tão diferentes dos mestres de
Lisboa e, muito em especial, de Coimbra: "Era raro trazer um plano de aula
articulado ponto a ponto. Respeitava apenas o que se pode achamar as leis do
campo de interesses - o título do curso e o assunto - procurando manter um
mínimo de nexo didáctico. Isto me criou fama de professor interessante e
persuasivo mas pouco fiel aos padrões. Sofri com o "mas" sabendo-o
exacto. Mas a vocação era essa, e ou me salvava rasgatando a deficiência
metodológica com certo poder socrático de acordar o nosce te ipsum fornecendo-lhe
contudo, de caminho, algumas noções aferidas, ou teria de concluir por um
desacerto de carreira imputável à escola que me selecionara e sobretudo a mim
mesmo."
"O ensino", ponderou ainda, "não é mera informação do saber mas
norma de humanidade, testemunho do autêntico. Uma sociedade que só instituísse
informações teóricas aplicáveis ao êxito rentável teria a civilização
moribunda. É o grande risco da nossa."
"Toda a vida", continuou Nemésio, "estudei de tudo e o mais que
podia, para o que desse e viesse. Não me preparava dia a dia para amanhã e
depois ou racionando, como a formiga, do Verão propício ao Inverno rigoroso.
Mas talvez não fosse apenas leviano, como a cigarra, pois nunca tive de dançar
no Inverno e cantei sempre."
"Nisto de fabulário (...) cheguei a pensar em escrever eu mesmo a minha
fábula, que seria O Rouxinol e o Mocho, para tentar tirar a
limpo o que seria a moral da minha passagem por este mundo: pois já nos bons
tempos de Coimbra eu era, entre os sábios aquiescentes, um poeta extraviado, e
entre os poetas maliciosos um sábio enganado no número da porta..."
Ao traçar o seu próprio perfil acrescentava: "Sessenta anos de letras
fizeram de mim uma espécie de corrente contínua da fala - penso em acto, e como
que já nem posso fazer funcionar o interruptor, esperar a caridade de um pouco
de vida vegetativa, que os velhos tanto apreciam à imagem e esfíngica
semelhança dos Gatos de Baudelaire, texto que por acaso não
saltei nas minhas negligências de ofício...
Mas fazia questão de observar: "Como sou filólogo", linguista à antiga;
"penso por dentro das palavras e, aqui, recorro a Virgílio: Exerceo
diem."
Para Nemésio uma lição constituía um acto de criação, fruto das circunstâncias
de momento, suscitando nuns o interesse apaixonado, noutros o choque do
insólito, mas fosse qual fosse a reacção ninguém ficava indiferente. Tinha como
objectivo despertar vocações, suscitar entusiasmos em vez de seguir os rumos do
ensino tradicional, retórico e formalista, repetindo até ao limite de idade as
mesmas lições e os mesmos cursos.
Através da última lição Vitorino Nemésio fez uma série de evocações de
acontecimentos e figuras da universidade, de Lisboa e de Coimbra; os contactos
com mestres e intelectuais da França, da Bélgica, da Espanha. A vida vivida na
literatura, no jornalismo, e até na política, no ardor dos anos 20 e 30. Passo
a passo, ainda se depara o irresistível testemunho das raízes açorianas.
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