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quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Os "Monstros Sagrados" jamais serão esquecidos - Vitorino Nemésio



 A última lição na Faculdade


ANTÓNIO VALDEMAR



Dezembro de 1971. Perante um auditório repleto de colegas, alunos e outros intelectuais e artistas que também lhe foram levar um abraço afectuoso, Vitorino Nemésio proferiu na Faculdade de Letras de Lisboa a última lição. Completava dentro de dias 70 anos e atingia o limite da idade imposto pela lei, a fim de cessar funções docentes.

Na despedida oficial terminou com esta declaração peremptória: "Aos meus velhos e últimos alunos, todos tão fiéis, ou então discretos censores, comovidamente digo o meu "até à vista!""

""Decíamos ayer...", começou Fr. Luis de León a sua lição, anos depois de o cárcere lhe ter interrompido a última. Eu, que resisto atrevido ao divino dom da humildade de que fiz tão mau uso, gloso assim, ao fechar:

"Diremos amanhã..."

Pois quem pode afirmar que isto não continua?"

O mestre de gerações sucessivas, o escritor e o comunicador que, ao longo de mais de meio século, exerceu intervenção permanente através da cátedra, do livro, dos jornais, da rádio e da televisão, não aceitava a reforma.

E não aceitou mesmo. Horas antes de ser internado no Hospital onde viria a falecer ainda falava na Academia das Ciências sobre o centenário de Azevedo Neves, professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, seu patrício e amigo.

Sem ter escrito o livro de memórias que todos esperávamos (e se encontram, afinal, dispersas em crónicas, poemas, ficções e cadernos de apontamentos do espólio) Vitorino Nemésio deixou na última lição - estou ainda a ouvi-lo - o retrato e auto-retrato do muito do que foi e do que sonhou: "Quis ser padre, militar, marinheiro, médico. E isto não só pelo lúdico mimetismo de infância e da adolescência, mas por um forte imperativo de intuição e vivência de situações humanas tópicas no contexto social em que cresci - o que já tem muito mais que ver com a personalidade radical em crisálida do que com as suas leis de desenvolvimento etário."

Como se definiu e como classificava a sua própria actividade de intelectual repartida entre a escrita e o magistério: "O que fiz como poeta, historiador e biógrafo (o género tem má fama...) já não é desta conta. Só serve para pôr a questão: se um criador verbal pode ser professor. A tradição italiana de Leopardi a Ungaretti - escalas à parte - diz que sim. A francesa quase que só apresenta o caso de Valéry, ainda assim apenas chamado a uma rubrica de Poética no Colégio de França por força do fascínio cartesiano dos noemas formais de Monsieur Teste, que assim doutorou o modesto agenciário de uma companhia de seguros. Sábio oficial, na família, era só o irmão, Jean Valéry, que ainda conheci e tratei, decano de Direito em Montpellier."

Como explicava o ensino, que leccionava em moldes tão diferentes dos mestres de Lisboa e, muito em especial, de Coimbra: "Era raro trazer um plano de aula articulado ponto a ponto. Respeitava apenas o que se pode achamar as leis do campo de interesses - o título do curso e o assunto - procurando manter um mínimo de nexo didáctico. Isto me criou fama de professor interessante e persuasivo mas pouco fiel aos padrões. Sofri com o "mas" sabendo-o exacto. Mas a vocação era essa, e ou me salvava rasgatando a deficiência metodológica com certo poder socrático de acordar o nosce te ipsum fornecendo-lhe contudo, de caminho, algumas noções aferidas, ou teria de concluir por um desacerto de carreira imputável à escola que me selecionara e sobretudo a mim mesmo."

"O ensino", ponderou ainda, "não é mera informação do saber mas norma de humanidade, testemunho do autêntico. Uma sociedade que só instituísse informações teóricas aplicáveis ao êxito rentável teria a civilização moribunda. É o grande risco da nossa."

"Toda a vida", continuou Nemésio, "estudei de tudo e o mais que podia, para o que desse e viesse. Não me preparava dia a dia para amanhã e depois ou racionando, como a formiga, do Verão propício ao Inverno rigoroso. Mas talvez não fosse apenas leviano, como a cigarra, pois nunca tive de dançar no Inverno e cantei sempre."

"Nisto de fabulário (...) cheguei a pensar em escrever eu mesmo a minha fábula, que seria O Rouxinol e o Mocho, para tentar tirar a limpo o que seria a moral da minha passagem por este mundo: pois já nos bons tempos de Coimbra eu era, entre os sábios aquiescentes, um poeta extraviado, e entre os poetas maliciosos um sábio enganado no número da porta..."

Ao traçar o seu próprio perfil acrescentava: "Sessenta anos de letras fizeram de mim uma espécie de corrente contínua da fala - penso em acto, e como que já nem posso fazer funcionar o interruptor, esperar a caridade de um pouco de vida vegetativa, que os velhos tanto apreciam à imagem e esfíngica semelhança dos Gatos de Baudelaire, texto que por acaso não saltei nas minhas negligências de ofício...

Mas fazia questão de observar: "Como sou filólogo", linguista à antiga; "penso por dentro das palavras e, aqui, recorro a Virgílio: Exerceo diem."

Para Nemésio uma lição constituía um acto de criação, fruto das circunstâncias de momento, suscitando nuns o interesse apaixonado, noutros o choque do insólito, mas fosse qual fosse a reacção ninguém ficava indiferente. Tinha como objectivo despertar vocações, suscitar entusiasmos em vez de seguir os rumos do ensino tradicional, retórico e formalista, repetindo até ao limite de idade as mesmas lições e os mesmos cursos.

Através da última lição Vitorino Nemésio fez uma série de evocações de acontecimentos e figuras da universidade, de Lisboa e de Coimbra; os contactos com mestres e intelectuais da França, da Bélgica, da Espanha. A vida vivida na literatura, no jornalismo, e até na política, no ardor dos anos 20 e 30. Passo a passo, ainda se depara o irresistível testemunho das raízes açorianas.



Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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