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terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Carlos do Carmo um fadista conhecido nos quatro cantos do mundo



Carlos do Carmo – O fadista surpreendente

Desde o primeiro disco que Carlos do Carmo renovou a forma de se cantar e ouvir fado. A celebrar 50 anos de carreira, o fadista não para de nos surpreender, quer na abordagem à disciplina que lhe é mais querida, o fado, quer na maneira de estar com o público, que trata como um velho amigo.
Em 2013, Carlos do Carmo esgotou, em duas datas sucessivas, o grande auditório do Centro Cultural de Belém (CCB). Foi festa rija a celebração dos 50 anos de carreira – cerca de 250 fados gravados – de um fadista que se estreou no mesmo ano dos Beatles (1963) e que gravou o seu primeiro fado, com piano, baixo, bateria e guitarra eléctrica e um coro de três senhoras, à revelia dos puristas da canção nacional. Quis ele que o espetáculo no CCB fosse alegre, “uma partilha de alma que desse às pessoas esperança e confiança na vida, neste momento difícil que o mundo vive”.

Nos últimos anos, conta, tem sentido por parte do público um acentuar de amor e respeito que lhe é embaraçoso. Esta coisa de esgotar os dois concertos deixou-o surpreendido. “Canto há 50 anos e as pessoas ainda não se fartaram de me ouvir?!”
Pelos vistos não. O público sabia o reportório de cor. “E sabiam o nome da minha mulher, dos filhos e dos netos. Alguns contam-me que começaram a namorar a ouvir este ou aquele fado. Há uma cumplicidade muito forte. Não há aquela loucura do aplauso do concerto de rock, há o grande silêncio, a grande contenção. Acabo um fado, batem-se só as palmas suficientes para ver se recomeço logo a seguir.” Depois daquele aplauso prolongado, sente sempre que há uma vontade de que continue a cantar. Fez dois encores. Custou-lhe, fez sinais a dizer que está velhinho. “E o público tem esse respeito. Comove-me muito, é profundamente inspirador. Mas nessa altura apetece-me cantar até à última gota de sangue.”
Há quatro anos fez sete encores na Casa da Música, no Porto. Estava tudo marcado com a Orquestra Sinfonietta de Lisboa e com os seus músicos, e acordou completamente afónico. À hora marcada estava rouco e disse-lhes: “Boa noite, estou afónico não vou poder cantar.” Foi recombinada nova data. “Só quatro pessoas pediram o reembolso, por razões de força maior, e cantei mais sete temas nesse espetáculo. Pensei que não lhes podia negar isso, porque lhes devia o outro concerto, porque lhes devo tudo.”
Não consegue, nem quer, evitar as pessoas. “A popularidade não me incomoda. As pessoas não são invasivas, mas sim de uma delicadeza extraordinária.” A simpatia desarmante valeu-lhe o cognome de Charles du Charme – da autoria do poeta José Carlos de Ary dos Santos (“um homem que amei profundamente”, diz-nos), que lhe escreveu 33 fados. “Na altura do PREC (Processo Revolucionário em Curso), em 1975, encontrávamo-nos na casa dele na Rua da Saudade, e, de gin tónico na mão, tínhamos aquelas conversas de mata e esfola, e eu dizia-lhe: olha que não é tudo a preto e branco, isto tem várias cores. Ele respondia: lá está o charmoso, e o nome ficou para um naipe restrito de amigos.”

Amor ao fado
Este espírito entusiasmado com que encara a vida foi reforçado há 14 anos, quando viu a morte passar-lhe à frente. Desde então, tem a certeza que “cada dia deve ser vivido o melhor que se sabe e pode”. Essa é uma das razões pelas quais não se retirou de cena. A outra “é o encontro sistemático com a descoberta”.
“Quando se começou a estudar a candidatura do fado a Património Mundial, percebi que era um leigo na matéria, eu que julgava que sabia alguma coisa. Aprendi a tradição oral, ouvi os mais velhos, os que nasceram no século XIX e me contaram coisas muito bonitas de antigamente. Quando um grupo de sábios começa a estudar a matéria viva que é o fado, eu pus-me a pensar, o que posso dar a isto, do tanto que isto me dá?”
E tem sido esse o caminho. Mesmo quando os puristas do fado não viram com bons olhos que gravasse um disco com a pianista Maria João Pires, com fados feitos pelo maestro Vitorino de Almeida, Carlos do Carmo fê-lo porque a pianista os desafiou ao vivo. À frente de um microfone, perante uma plateia cheia de gente, que concordou e aplaudiu. O disco que gravou em 2010 com Bernardo Sassetti “foi um disco de amor”. Aí está outra pessoa que amou. “Uma perda irreparável, um génio. Um dia, pensei, este menino toca magistralmente, e propus-lhe que gravássemos um disco de canções que infelizmente não foram feitas para mim, mas de que gosto muito. Foram sessões inolvidáveis, criámos uma empatia fantástica”. O disco vai de Violeta Parra a Zeca Afonso, passando por Jacques Brel.
Em 2007 gravou À noite. Pediu a um leque de eruditos, como Júlio Pomar (que hoje é daqueles homens que beija), que lhe escrevessem letras sem aquela carga emocional própria do fado. Foi um sucesso! No mesmo ano, Carlos do Carmo ajudou à concretização do filme Fados, de Carlos Saura. Anos antes, tinha sido cúmplice do projeto do Museu do Fado, e, mais recentemente, integrou a equipa da Candidatura do Fado a Património Mundial da Humanidade, tendo sido um dos principais responsáveis pela sua consagração junto da UNESCO. Se calhar era este o seu fado, embora num primeiro momento lhe tenha virado as costas.

Um brevíssimo retrato
“Nasci em 1939, no ano em que começou a II Guerra Mundial. A minha mãe – a fadista Lucília do Carmo – cantou até ao oitavo mês de gravidez. Disfarçava a barriga com o xaile. Essa marca ficou. Em rapaz, ouviu os grandes fadistas e guitarristas dessa geração. Depois, interessou-se por outro género de músicas. Fiz um movimento freudiano.” Tirou hotelaria na Suíça, geriu o Faia, casa de fados dos pais, e era simultaneamente um grande boémio. “Depois do trabalho ia cantar para os locais onde tocavam os meus amigos. Cantei canções brasileiras, italianas, inglesas e americanas.” Um dia, Mário Simões convidou-o para gravar um fado com o seu quarteto. “E eu, filho de uma das fadistas mais rigorosas da história do fado, apareço a cantar acompanhado de uma guitarra elétrica. Foi um estoiro na rádio.” Segue-se um disco com orquestra sinfónica, dirigido pelo maestro Joaquim Luiz Gomes. “Era uma coisa superpopular. Nas faixas juntava um fado de Amália Rodrigues, outro do Marceneiro, e mais dois, um da Ercília Costa e outro da Lucília do Carmo. Não fiz a coisa por menos. Mais uma vez, os puristas do fado disseram: mas porque é que este miúdo não canta com guitarra e viola como os outros?”
Cantou a cidade de Lisboa como ninguém, e levou-a ao mundo. Um dos momentos altos da sua carreira foi estrear-se no Olympia, em Paris, em 1980. “Um sonho tornado realidade, numa sala que formava o público. Aí entrei no catálogo.” Mesmo assim, o fado estava colado à imagem de Amália Rodrigues. Perguntavam-lhe: “Mas os homens também cantam fado?” “Respondeu-lhes um sujeito bizarro, bem vestido, lenço no peito e a falar francês fluentemente, que, no final, ainda os brindou com uma valsa de Brel”.
Pisou as óperas de Frankfurt e de Wiesbaden, assim como foi várias vezes recebido de braços abertos em Madrid, onde é aclamado pelo público e pela imprensa. Cantou no Canecão do Rio de Janeiro e no Teatro D. Pedro V em Macau, com transmissão em direto para a China. No Canadá, subiu ao palco da Place des Art, em Montreal. Em Toronto “parecia que estava em Lisboa, no São Luiz. Nas comunidades luso-canadianas os pais passaram com afeto os meus discos aos filhos.”
Nestas viagens chegaram a dizer-lhe: “Muito obrigada, você trouxe-me o cheiro da minha aldeia. Ficava tocadíssimo, mas é uma coisa para não abusar, é tão sagrada e tão séria. É uma forma de aprender a ser português. Estamos a falar de gente que emigrou em condições dificílimas”. Nestes périplos pelos cinco continentes aprendeu também o bom que é ser português. “Somos maus gestores da causa interna, mas mal damos um passo num sítio que não é nosso, tornamo-nos imbatíveis.”
Foi imbatível a sua luta para que “o cheiro” da sua aldeia – o fado – fosse considerado Património Imaterial da Humanidade em 2011. Recebeu esta consagração com “uma alegria indescritível”, mas sentiu “desde a primeira hora que foi, é, e será um trabalho infindável. De grande utilidade para Lisboa e para Portugal”.
texto Maria João Veloso 

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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