Lisboa,
começos de setembro
Minha boa Madrinha:
Adivinho daqui os sisudos ensaios que os ditos
sociólogos hão de compor, achando-se na posse de tal informação; e
imagino que surpreenderão os vindouros com títulos tão suculentos
como Hábitos alimentares em prisão
domiciliar nos começos do século XXI; ou Influência do extra-queijo no Direito Penal e
em sua arquitetura jurídica; e ainda, Indigestões de pepperoni em contexto de
indagação criminal: novos contributos.
A minha madrinha sorri, por certo. Mas não deixará de reconhecer
que este jovem que trago ao seu conhecimento é, mesmo contra a sua
vontade, um benemérito digno da nossa efusiva gratidão. Sobejamente a
merece ele, que mais não seja pela clareza com que encerrou o episódio.
Perguntado sobre se iria comunicar a impossibilidade de entregar a comida à sua
cadeia (de produtos alimentares, como queria dizer a atabalhoada repórter), de
pronto respondeu: “Cadeia? Esperem aí, eu não estou preso!”
Porque, por fim, a pizza não foi
entregue e o extra-queijo e mais o pepperoni falharam o alvo a que iam
dirigidos! Por lamentável esquecimento, faltava àquele Mercúrio das pizzas uma
identificação que, bem nítida e bem eloquente, dissesse às forças da autoridade
quem ele era de facto. Deus sabe, terão pensado os espertos guardiões do
número 33 e do seu residente, que engenhos e que artimanhas podem esconder-se
nas vastas caixas de cartão que levam as pizzas de porta em porta.
Assistindo a tudo o que bem
imperfeitamente lhe narro, uma amiga minha, pessoa de invejável argúcia e dotes
domésticos irrepreensíveis, afiançou-me que nada disto tem a verosimilhança de
que outrora falava o velho Aristóteles. Segundo ela, aquele número 33 a
que se recolheu a ilustre personagem estará mais do que fornecido de
confortos e de mantimentos. A ser assim, a entrega da pizza, garante a
minha amiga, teria resultado de uma montagem não destituída de
intenção publicitária. Quem tal faria? A cadeia (salvo seja) de
comidas? Um provocador político? Um qualquer gracioso desejoso de fama momentânea?
Não sei.
O que sei e convictamente sustento é que o meu alegre país está
cheio de confortos que lhe asseguram e a quantos tivemos a ventura de
aqui nascer um lugar na História dos povos. Veja bem, estimada madrinha: somos
servidos, de forma bem diligente e constante, por escribas e por repórteres
preocupados com o nosso divertido bem estar e não com as chagas que a vida
moderna reserva aos que a observam com o olhar bisonho dos pessimistas. E se
pensarmos (como eu penso) que os tais periodistas e os tais repórteres
mais não são do que a ágil extensão (ou o braço armado, como diria o velho
general Sequeira) da incompreendida e estoica “classe política”, então tudo se
conjuga para que aqui desfrutemos daquela aurea mediocritas que os Antigos almejavam.
Refugiados em debandada, crise demográfica, ameaças terroristas, bancos em
rutura, colapso das bolsas, desemprego de jovens (e de adultos!), impostos que
nos massacram, desconjuntamentos da velha Europa tudo isso é secundário, se
soubermos gozar a existência amena que por estas gentes nos é
oferecida, com generoso altruísmo.
E assim, a despreocupada vida que nos tocou em sorte bem livre
está de coisas tenebrosas. Basta que saibamos entreter-nos com os
extra-queijos de uma pizza que errou o alvo! Não entendo mesmo por que razão
persistem alguns espíritos quezilentos em falar dos males que, segundo
eles, nos atormentam, sempre ignorando os esforçados trabalhos do bem falante
Coelho e do risonho Portas, a bem da Nação. Se mais não alcançar a bondade lusitana,
bem merecem eles, no dia que a Providência o destinar, ser
brindados também com uma pizza condimentada a seu gosto e bel-prazer. E
mais: que tal pizza seja entregue, para castigo, por um dos tais
espíritos rabugentos, bem filmado pelos repórteres de serviço, para que a justa
penitência se espalhe e seja conhecida urbi et orbi. Quem sabe, por fim aprenderão eles
que o ódio azedo que destilam só contribui para infernizar os dias dos que nos
governam e os de todos aqueles que têm a fortuna de assim ser governados.
Beija-lhe as mãos com
carinho,
Carlos
Fradique Mendes
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