Por Pâmela Carbonari
Se você
está lendo este post é porque está online, logo deve ter visto na sua página
inicial de buscas do Google o doodle feito em homenagem ao 178º aniversário de
Machado de Assis. Nas ilustrações do artista brasileiro Pedro Vergani, o
precursor do realismo no país aparece cercado por elementos que remetem à sua
vida no Rio de Janeiro e às cenas icônicas de suas obras-primas, como as
batatas de Quincas Borba e Bentinho e Capitu,
de Dom Casmurro.
“Em 1839,
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu de uma família simples no Morro do Livramento,
no Rio de Janeiro, Brasil. Ele era neto de escravos libertos, em um país onde a
escravidão não foi totalmente abolida mesmo 49 anos depois. Machado enfrentou
muitos desafios por ser mestiço no século 19, dentre eles acesso limitado à
educação formal. Mas nada disso o impediu de estudar literatura. Ao trabalhar
como tipógrafo, ele experimentou poemas, romances, romances e peças de teatro.
”, descreveu a empresa na homenagem. O doodle à Machado de Assis foi elogiado nas
redes sociais sobretudo por ter representado o autor negro como de fato era e
não com a pele clareada como costuma ser retratado.
São muitos os motivos que fazem
de Machado o gênio das letras no Brasil. Ao contrário da maioria dos grandes
escritores do país, Joaquim Maria Machado de Assis é de origem humilde, era
neto de escravos alforriados, cresceu no Morro. Se quase dois séculos depois
pessoas negras ainda têm menos acesso à educação, a primeira metade do século
XIX estava longe de ser um período de igualdade racial. Machado estudou em
escola pública, não frequentou a universidade – o que fez Joaquim virar Machado
de Assis foi sua grande ambição intelectual.
Autodidata,
ele aprendeu francês quando trabalhou em uma padaria e, posteriormente,
enquanto tipógrafo teve contato com poesias, romances e outros tipos de
literatura. Aos 16 anos já participava de um grupo de escritores e, na mesma
época, publicou seu primeiro poema, Um Anjo.
Depois disso, Machado explorou quase
todos os gêneros literários e se a versatilidade impressiona, a quantidade de
material produzido também: escreveu nove romances, 200 contos, mais de 600
crônicas, diversas peças teatrais, cinco coletâneas de poemas e sonetos. Sem
contar que trabalhou como tipógrafo, revisor, funcionário público e colaborou
para revistas e jornais do Rio de Janeiro. O carioca assistiu ao fim do Império
e o surgimento da República – e isso não passa despercebido na sua obra. Vale
notar os reflexos dessa mudança política tanto em seu trabalho como escritor
quanto jornalista.
Assim que
completou 40 anos, suas crises de epilepsia pioraram e ele quase perdeu a
visão, mas foi nesse período que seus escritos ganharam ainda mais força:
Machado foi fundamental para a transição do romantismo para o realismo no país,
tendo Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) como marco
inaugural. No entanto, falar de sua obra-prima apenas como um primeiro passo
para um movimento literário seria reducionista, para não dizer burro. A começar
pela dedicatória provocativa do livro escrito em primeira pessoa por um
narrador-defunto: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver
dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”.
O romance
racional em que um morto escracha a decadência da burguesia, seus vícios,
mesquinharias e frustrações é o ponto alto de Machado de Assis como Machado de
Assis. A partir de Memórias Póstumas,
ele se consagrou como um profundo conhecedor da psique humana, explorando as
hipocrisias e vaidades de seus personagens em narrativas irônicas onde o
pessimismo se veste de bom-humor sem perder a profundidade e a oportunidade de
alfinetar a política e a sociedade da época.
Não à toa, esse é seu livro mais
reconhecido fora do país. Para a crítica Susan Sontag, Machado é o melhor
escritor da América Latina, superando o argentino Borges; o poeta Beat Allen
Ginsberg o descreveu como outro Kafka; Philip Roth o comparou ao dramaturgo
Samuel Beckett e Harold Bloom foi ainda mais longe dizendo que Machado é o
maior escritor negro de todos os tempos.
Apesar
de Memórias Póstumas ter aberto as portas para o
realismo no país, ser um hino literário do Niilismo e de Quincas
Borba também ser
uma obra de destaque, muitos leitores brasileiros são mais apegados ao hino da
desconfiança, Dom Casmurro (1899). O público
nacional se envolveu tanto mais nos olhos de Capitu que nas batatas
humanitistas de Quincas Borba que existe um boato de que o ciúme da obra tenha
pinceladas autobiográficas: alguns dizem que o filho do também escritor José de
Alencar foi fruto da traição de sua esposa com Machado de Assis. A história,
assim como a de Capitu e Escobar, amigo de Bentinho, nunca foi confirmada.
Entre a publicação desses dois grandes livros, Machado participou da fundação
da Academia Brasileira de Letras e, dado o reconhecimento que tinha entre seus
colegas, foi o primeiro presidente da ABL.
Em 69 anos, o Bruxo do Cosme
Velho conseguiu abordar uma pluralidade de assuntos tão densa e diversa quanto
os gêneros que trabalhou. Caçoou dos jogos políticos e do cinismo dos mais
abastados, expôs as fraquezas, os arrependimentos e as ilusões humanas com a
mesma concisão com que tratou temas universais como o amor, a ganância e o
ciúme. Morreu na primavera de 1908 cercado de amigos e, dali em diante, tornou-se
ainda mais imortal. Difícil não concordar com Harold Bloom.
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