JORNALISMO EM DESTAQUE

485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Do escritor Picoense Urbano Bettencourt




(Continuação) 
Criado no âmbito das aulas de Literatura Portuguesa, no então Liceu Nacional Antero de Quental, por um grupo de (muito)  jovens estudantes  e tendo recebido o apoio de alguns professores e mesmo de escritores da geração anterior, o Círculo Literário Antero de Quental (CLAQ) foi, de facto, um dos pólos de dinamização cultural na cidade (conferências, recitais  de poesia, intervenção escrita na imprensa).

Um dos seus mais destacados elementos, o poeta e crítico Eduíno de Jesus, concedeu em 1987 uma longa entrevista a Álamo de Oliveira, na qual são explicitados os propósitos do grupo: 
“Os nossos objectivos eram, por um lado, acabar com o ostracismo a que estavam votadas nos Açores a literatura e as artes modernas, não obstante o prestígio que tinham nas letras (por se ignorar ou fazendo-se por ignorar a sua obra «modernista») autores como Armando Côrtes‑Rodrigues e Vitorino Nemésio e o contributo dado à modernidade no campo das artes plásticas por Canto da Maia, Domingos Rebelo, Albuquerque Bettencourt, António Dacosta, e, por outro lado, encontrar, pela teoria e na prática a identidade (se a tinha) de uma literatura propriamente açoriana, seguindo o exemplo de Cabo Verde e na peugada de Roberto de Mesquita, Vitorino Nemésio, etc.Não foi fácil. Naquele tempo, a palavra «Modernismo», nos Açores, ainda cheirava a enxofre e pronunciá-la era como anunciar a 8.ª praga do Egito, e quanto a ideias «nativistas», mesmo só no âmbito da Literatura, sustentá-las era concitar a suspeição de antipatriotismo, um pouco como hoje, é certo, mas com a agravante de que, naquela altura, se indistinguiam os conceitos de «pátria» e «Estado Novo», do que resultava as ideias «nativistas» serem tidas por abjurantes do tabeliónico «repúdio do comunismo» e de todas as ideias subversivas.”(Jesus: 1987)
A citação, demasiado longa talvez, permite aprofundar o que em Fernando Aires era dito de forma sucinta e lacunar. Por um lado, o ambiente mental e ideológico, conformista e avesso a sinais de mudança, em nome de uma acomodação política, mas de igual modo avesso a práticas estéticas associadas ao modernismo, fossem  elas no campo da literatura ou no  das artes plásticas; por outro lado, uma proposta de reflexão teórica que, acompanhando a prática literária, indagasse a possibilidade e os termos de uma literatura açoriana.
Em suma, tratava-se de um projecto que se propunha articular as expressões estéticas da modernidade com a reavaliação da tradição açoriana em várias dimensões:  a dimensão prática, textual,  a partir de  Roberto de Mesquita, o simbolista do século XIX  acerca do  qual Nemésio escrevera,  em 1939, ser  «o primeiro poeta que exprime alguma coisa de essencial na condição humana tal como ela se apresenta nas ilhas dos Açores» (Nemésio, 1970: 149); e a dimensão teórica, respeitante  ao enquadramento da literatura açoriana, os seus parâmetros, constantes e modos de ser, um assunto  explicitamente abordado já desde meados do século anterior e que atravessava praticamente o século XX até àquele momento. E é neste contexto que surge referenciado o caso de Cabo Verde, como modelo de um processo a desenvolver nos Açores. Sob um outro ângulo, aquilo  que o depoimento de Eduíno de Jesus configurava era o desenvolvimento de um projecto cultural e literário assente numa dinâmica de interior-exterior, ilha-mundo (para utilizar os termos de um título de Pedro da Silveira), que era, aliás, uma lição também colhida no exemplo de Mesquita, num diálogo atento com outras práticas estéticas externas, não numa atitude de simples importação e imitação, mas de transformação e  incorporação, de acordo com a particular mundividência e as condições do próprio tempo e espaço. Essa abertura ao mundo contrastava, de algum modo, com algumas orientações advogadas durante a década anterior por algumas vozes, no sentido  de  o espaço cultural e literário da imprensa se ocupar (quase) exclusivamente de autores açorianos.
Caberia, no entanto,  a  Pedro da Silveira a mais consistente e duradoura difusão da ideário da Claridade, do mesmo modo que seria ele também o poeta açoriano em cuja obra os pressupostos e os procedimentos discursivos e semânticos dos claridosos deixariam um rasto mais profundo e evidente,  pelo menos numa determinada fase.
A forma como em 1942  descobriu a nova poesia cabo-verdiana, através de Ambiente, de Jorge Barbosa, está contada em vários lugares (cf. Silveira, 1986;  Franco, 1996) e revela um conjunto de pequenos acontecimentos em  rede insular, ao mesmo tempo que  atesta ainda a infindável curiosidade intelectual de Pedro da Silveira, que o levou a aproveitar sempre as ocasiões capazes de lhe abrirem as portas do conhecimento de  diferentes culturas e autores.
No caso concreto, tudo começou com a leitura de uma recensão do santomense Francisco José Tenreiro ao Ambiente, na revista Horizonte, da Faculdade de Letras de Lisboa, dirigida pelo madeirense Joel Serrão e mais tarde pelo açoriano Julião Soares de Azevedo. Uma carta enviada a Jorge Barbosa iria encontrá-lo já no Sal e iniciaria um contacto epistolar traduzido ainda na recepção de um exemplar autografado de  Ambiente. A verdadeira epifania que Jorge Barbosa representa para Pedro da Silveira («O meu primeiro mestre de modernidade e, vá lá, de açorianidade também, foi Jorge Barbosa, com o Ambiente») radica, primeiramente,  na constatação de que a «realidade que ele transmitia, de um Cabo Verde miserável em que as pessoas olhavam o mar como um caminho a transpor, de salvação, tinha muito que ver com a nossa  nos anos de 1930-1940» (Silveira, 1987: 4), mas desemboca, posteriormente, numa outra constatação, a de quão longe andam os escritores açorianos de uma atitude idêntica à que tomaram os cabo-verdianos e, pelo contrário, se entregam a um «bairrismo patrioteiro à Pinheiro Chagas» (1945a: 1), coisa a que já nos anos 20, e em registo irónico,  Nemésio descrevera como os «hinos à terra, no estilo das caravelas e das cruzes de Cristo dos cinzeiros.» (21995: 88).
Acrescente-se a isso o conhecimento, por parte de Pedro da Silveira,  do Comandante João de Deus Lopes da Silva, irmão de Baltasar Lopes, que aportava regularmente aos Açores com o seu navio Nossa Senhora dos Anjos e constituiu um elo decisivo na ligação a Cabo Verde e aos seus escritores (um deles, Manuel Lopes, a residir na ilha do Faial desde 1944); o Comandante Lopes da Silva acabaria por tornar-se também um dos propiciadores da renovação literária açoriana, pelo seu papel aglutinador e também pela revelação da literatura brasileira a essa geração de 40. Em mensagem electrónica de 17.09.2006, Eduíno de Jesus referia-se a esse aspecto,  dando conta das tertúlias com os jovens intelectuais de Ponta Delgada que o Comandante organizava a bordo do seu navio, sempre que por  passava pela ilha de S. Miguel. E Pedro da Silveira, logo nesses tempos, dava conta de ter encontrado na câmara de Lopes da Silva,  a bordo do Nossa Senhora dos Anjos,  «livros de Jorge Amado, um dos seus preferidos, livros sobre África e Cabo Verde e fotografias das Ilhas. Obras dos jovens autores de Cabo Verde.» (Silveira, 1946) Mais tarde, explicitará ainda: «Dos brasileiros das gerações de 22 e de 30, o que conhecemos devemo-lo primeiro a João de Deus Lopes da Silva» (Silveira, 1986: 41), acrescentando, para o seu caso pessoal, a intervenção de Manuel Lopes, que lhe enviava para as Flores as obras brasileiras de que dispunha.
A intervenção do escritor cabo-verdiano durante a sua estadia nos Açores não se limitou, porém,  a esse gesto de companheirismo literário: ele colaborou na imprensa local, expôs no Faial  um conjunto de pinturas suas e foi um dos fundadores do Núcleo Cultural da Horta,  em 1954, ao lado de outras personalidades e intelectuais  da cidade. E em 1950 proferiu na Horta a conferência Os meios pequenos e a cultura (editada no ano seguinte), em que se ocupa dos constrangimentos que afectam os  meios pequenos, dos prejuízos que daí advêm à criação cultural, sobretudo quando, além de pequenos, os meios são igualmente tacanhos.
A verdade é que, em virtude da conjugação de todos estes factores,  a  nova literatura e a cultura de Cabo Verde marcaram presença nas páginas do jornal A Ilha durante cerca de uma década (1945-1954), embora como maior visibilidade nalguns períodos. Poesia, narrativa, recensões críticas (em boa parte  assinadas pelo próprio Pedro da Silveira), ensaios de natureza etnográfica  e sócio-económica – tudo isso proporcionou ao leitor em geral um conhecimento do arquipélago cabo-verdiano e indicou aos escritores açorianos em particular como era possível desenvolver um projecto literário colectivo num espaço com tão poucas condições, «com comunicações precárias com o mundo e, por conseguinte, privado da maioria dos recursos culturais dos grandes meios.» (Silveira, 1945a: 1); por via indirecta, a referência  ao isolamento,  à distância e às reduzidas condições materiais constituía um argumento a mais numa estratégia persuasiva  que tinha em mente os destinatários imediatos do seu texto. E quanto a autores, um rastreio rápido encontra aí os nomes de Jorge Barbosa, Manuel Lopes, António Nunes, Pedro Corsino, Amílcar Cabral, Carlos Alberto Monteiro Leite, Aguinaldo Brito Fonseca, Gabriel Mariano, além do próprio Comandante Lopes da Silva (com algumas experiências líricas e narrativas, para lá da entrevista e do ensaio etnográfico).
Será, porém, na análise de alguns textos concretos que podemos encontrar a expressão do ideário claridoso, o modo como Pedro da Silveira lê à distância a poesia cabo-verdiana, tendo sempre em vista a  situação interna açoriana, por vezes indiciada de forma implícita, outras vezes directamente convocada e analisada em termos contrastivos (e em termos  provocatórios mesmo)  com o que ocorria na literatura do arquipélago a sul. 
Um desses textos poderá ser aquele em que procede a uma recensão crítica de Ambiente, de Jorge Barbosa, justamente o texto que inaugura a presença cabo-verdiana nas páginas de A Ilha. Fazendo-a preceder de uma reflexão genérica sobre literatura e condição humana, sobre o homem enquanto ser situado e concreto,  e os diferentes modos como a literatura pode aproximar-se  (ou não)   das suas angústias e perplexidade e das suas aspirações, Pedro da Silveira coloca-nos, mesmo sem referir os termos,  no campo da habitual dicotomia arte pela arte vs arte comprometida, entre uma arte individual e uma arte social, entre os escritores cujas obras atestam uma «humanidade isolada, individual», e aqueles «cuja obra bebe a essência vital que a anima na terra e nos dramas económico-sociais do homem» (Silveira, 1945: 1) – admitindo embora a qualidade literária verificável em qualquer dos domínios, de que os exemplos aduzidos  são, em síntese, Oscar Wilde e Marcel Proust, de um lado, e Graciliano Ramos e Erskine Caldwell, do outro. 
É a partir dessa  moldura teórica que Pedro da Silveira se ocupa da poesia de Jorge Barbosa, realçando que o seu (re)conhecimento externo se deve primordialmente ao facto de ela exprimir o «drama do homem  de Cabo Verde, prisioneiro do mar numas Ilhas pobres, esquecidas totalmente, assoladas pelo flagelo da seca, ansioso por transpor esse mar em busca do pão que precisa para não morrer de fome.» (Silveira, 1945: 1); no decurso da sua recensão, Pedro da Silveira virá a reiterar as afirmações anteriores, especificando as particularidades da obra de Jorge Barbosa, de um lirismo outro, diferente, o dos «destinos presos a uma vida dura, dos anseios frustrados mas intimamente nunca mortos das gentes crioulas, dos seus anseios de vida melhor em terra melhor.» (idem, p. 2). A esta dimensão temática, conteudística, deve acrescentar-se ainda (e por mera  dedução da abertura do texto) um traço discursivo facilitador da comunicação e da relação de empatia entre leitor e autor, ou seja,  «a comunicabilidade do estilo simples  e directo e o terra-a-terra das vidas movimentando-se nas suas obras» (idem, p. 1).
A terminar o seu texto,  a que uma adenda acrescentará ainda informação geral sobre outros escritores cabo-verdianos, Pedro da Silveira apresenta  um quadro contrastivo que revela a intencionalidade autoral e  dá ao texto uma «utilidade» literária e cívica, para lá da simples divulgação jornalística: «Tomarei ainda da obra de Jorge Barbosa (como da de outros escritores crioulos) um exemplo para os intelectuais açoreanos, abstratamente especados à beira do Gulf Stream, a magicar versos de amores impossíveis, à Soares de Passos, sem olhos para o que os rodeia.» (idem, p.2)
Nos seus diversos artigos sobre a literatura de Cabo Verde, Pedro da Silveira não deixará de acentuar essa vinculação dos escritores ao seu tempo  e espaço, traduzida numa poesia com raízes na terra, num contexto  em que «a realidade é já imperativa, o poeta já não pode furtar-se a ela» (Silveira, 1950: 2), como escreve ao recensear os Poemas  de quem ficou, de Manuel Lopes. Este  último corroborará este modo de ver e ler, numa longa entrevista concedida a Pedro da Silveira, lançando mão da metáfora «ficar os pés no chão», para dar conta do  propósito dos claridosos quanto a uma arte enraizada no seu próprio meio, embebida «do húmus autêntico das nossas ilhas» (F.F.-M, 1950: 2).
A dimensão literária será apenas um dos aspectos a reter da leitura da Claridade e da atenção prestada pelo poeta açoriano à cultura cabo-verdiana em geral. Ele não deixará de referir-se a uma outra componente, a que diz respeito à natureza social,  histórica de Cabo Verde, que diferentes ensaístas ajudam a compreender. Se no texto em que entrevista o Comandante Lopes da Silva (Silveira: 1946: 1), coloca os ensaios de história económico-social de Simão de Barros no mesmo plano de importância dos textos criativos dos principais claridosos,  enquanto factores de conhecimento da realidade de Cabo Verde, mais tarde, ao ocupar-se da nova fase de Claridade, registará que ela «peca por demasiado circunscrita à literatura», lamentando a ausência de «artigos e notas sobre os cruciantes problemas da terra crioula», bem como a ausência de nomes como os de Jaime Figueiredo, João Lopes, António Nunes e Teixeira de Sousa, cuja participação viria valorizar a revista, conferindo-lhe uma configuração mais abrangente (Silveira, 1949: 2)[1].
Na recensão aos Poemas de quem ficou, de Manuel Lopes, deixou-nos Pedro da Silveira uma anotação que nos remete já para o interior da própria poesia, para o impacto inicial de Jorge Barbosa na descoberta do seu caminho poético:
“Lembro os tempos há quatro ou cinco anos atrás, quando me foi possível tomar um  contacto mais directo com a nova Literatura Cabo-verdiana e procurava já encaminhar-me – tão às cegas –  no sentido da açorianidade nalgumas pobres tentativas poéticas. Jorge Barbosa foi então para mim como a luz a indicar-me uma porta no meio da noite. Foi este poeta humaníssimo, com o seu Ambiente, quem me afinou o ouvido para escutar os ruídos da banda de lá – a mão que se estendeu para mim e me levou para lá da porta. E a mesma sensação, com maior ou menor intensidade, tiveram outros do meus companheiros.” (Silveira: 1950: 2)
 Na verdade, uma das vozes que mais repercutem no primeiro livro de Pedro da Silveira, A Ilha e o Mundo (1952), é a de Jorge Barbosa, embora sem descurarmos a presença de Manuel Lopes e António Nunes, que participam  igualmente  nesse diálogo intertextual.
A interpelação directa de Barbosa  no poema 3 da sequência «Êxodo»  é apenas um traço pontual das afinidades que a poesia de Pedro da Silveira manifesta  com a de Jorge Barbosa, facilmente detectáveis na idêntica percepção do «mundo abreviado» da ilha: cercado, preenchido por vidas monótonas e de pequenos acontecimentos, no qual se recorta o perfil vago de figuras humanas divididas entre o apego à terra e o apelo do mundo, finalmente anuladas pelo peso da rotina e «encharcadas de solidão». Num quadro assim,  a irrupção  do grande mundo e dos seus sinais, através do vapor, alterando o ritmo da vivência quotidiana, reveste-se de aspectos festivos e excepcionais («o dia santo de São Vapor») – mas este é também um momento dramático, pois nele se concretizam ou frustram os desejos de partida e a aspiração de uma vida outra, melhor, em fuga às fomes insulares e à reduzida dimensão do espaço.
O poema Ilha, na escassa dimensão dos seus quatro versos, resume a situação insular, nas vertentes histórica, geográfica, individual e colectiva e num registo   que deixa de ser uma simples  expressão localista para tornar-se, em  outro contexto estético, a expressão da mesma condição humana de que falava Nemésio, a respeito   de Mesquita.

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

Sem comentários:

Enviar um comentário