(Continuação)
Criado
no âmbito das aulas de Literatura Portuguesa, no então Liceu Nacional Antero de
Quental, por um grupo de (muito) jovens estudantes e tendo recebido
o apoio de alguns professores e mesmo de escritores da geração anterior, o
Círculo Literário Antero de Quental (CLAQ) foi, de facto, um dos pólos de
dinamização cultural na cidade (conferências, recitais de poesia,
intervenção escrita na imprensa).
Um
dos seus mais destacados elementos, o poeta e crítico Eduíno de Jesus, concedeu
em 1987 uma longa entrevista a Álamo de Oliveira, na qual são explicitados os
propósitos do grupo:
“Os
nossos objectivos eram, por um lado, acabar com o ostracismo a que estavam
votadas nos Açores a literatura e as artes modernas, não obstante o prestígio
que tinham nas letras (por se ignorar ou fazendo-se por ignorar a sua obra
«modernista») autores como Armando Côrtes‑Rodrigues e Vitorino Nemésio e o
contributo dado à modernidade no campo das artes plásticas por Canto da Maia,
Domingos Rebelo, Albuquerque Bettencourt, António Dacosta, e, por outro lado,
encontrar, pela teoria e na prática a identidade (se a tinha) de uma literatura
propriamente açoriana, seguindo o exemplo de Cabo Verde e na peugada de Roberto
de Mesquita, Vitorino Nemésio, etc.Não foi fácil. Naquele tempo, a palavra
«Modernismo», nos Açores, ainda cheirava a enxofre e pronunciá-la era como
anunciar a 8.ª praga do Egito, e quanto a ideias «nativistas», mesmo só no
âmbito da Literatura, sustentá-las era concitar a suspeição de antipatriotismo,
um pouco como hoje, é certo, mas com a agravante de que, naquela altura, se
indistinguiam os conceitos de «pátria» e «Estado Novo», do que resultava as
ideias «nativistas» serem tidas por abjurantes do tabeliónico «repúdio do
comunismo» e de todas as ideias subversivas.”(Jesus: 1987)
A
citação, demasiado longa talvez, permite aprofundar o que em Fernando Aires era
dito de forma sucinta e lacunar. Por um lado, o ambiente mental e ideológico,
conformista e avesso a sinais de mudança, em nome de uma acomodação política,
mas de igual modo avesso a práticas estéticas associadas ao modernismo,
fossem elas no campo da literatura ou no das artes plásticas; por
outro lado, uma proposta de reflexão teórica que, acompanhando a prática literária,
indagasse a possibilidade e os termos de uma literatura açoriana.
Em
suma, tratava-se de um projecto que se propunha articular as expressões
estéticas da modernidade com a reavaliação da tradição açoriana em várias
dimensões: a dimensão prática, textual, a partir de Roberto
de Mesquita, o simbolista do século XIX acerca do qual Nemésio
escrevera, em 1939, ser «o primeiro poeta que exprime alguma coisa
de essencial na condição humana tal como ela se apresenta nas ilhas dos Açores»
(Nemésio, 1970: 149); e a dimensão teórica, respeitante ao enquadramento
da literatura açoriana, os seus parâmetros, constantes e modos de ser, um
assunto explicitamente abordado já desde meados do século anterior e que
atravessava praticamente o século XX até àquele momento. E é neste contexto que
surge referenciado o caso de Cabo Verde, como modelo de um processo a
desenvolver nos Açores. Sob um outro ângulo, aquilo que o depoimento de
Eduíno de Jesus configurava era o desenvolvimento de um projecto cultural e
literário assente numa dinâmica de interior-exterior, ilha-mundo (para utilizar
os termos de um título de Pedro da Silveira), que era, aliás, uma lição também
colhida no exemplo de Mesquita, num diálogo atento com outras práticas
estéticas externas, não numa atitude de simples importação e imitação, mas de
transformação e incorporação, de acordo com a particular mundividência e
as condições do próprio tempo e espaço. Essa abertura ao mundo contrastava, de
algum modo, com algumas orientações advogadas durante a década anterior por
algumas vozes, no sentido de o espaço cultural e literário da
imprensa se ocupar (quase) exclusivamente de autores açorianos.
Caberia,
no entanto, a Pedro da Silveira a mais consistente e duradoura
difusão da ideário da Claridade, do
mesmo modo que seria ele também o poeta açoriano em cuja obra os pressupostos e
os procedimentos discursivos e semânticos dos claridosos deixariam um rasto
mais profundo e evidente, pelo menos numa determinada fase.
A
forma como em 1942 descobriu a nova poesia cabo-verdiana, através
de Ambiente, de
Jorge Barbosa, está contada em vários lugares (cf. Silveira, 1986;
Franco, 1996) e revela um conjunto de pequenos acontecimentos em rede
insular, ao mesmo tempo que atesta ainda a infindável curiosidade
intelectual de Pedro da Silveira, que o levou a aproveitar sempre as ocasiões
capazes de lhe abrirem as portas do conhecimento de diferentes culturas e
autores.
No
caso concreto, tudo começou com a leitura de uma recensão do santomense
Francisco José Tenreiro ao Ambiente, na revista Horizonte, da
Faculdade de Letras de Lisboa, dirigida pelo madeirense Joel Serrão e mais
tarde pelo açoriano Julião Soares de Azevedo. Uma carta enviada a Jorge Barbosa
iria encontrá-lo já no Sal e iniciaria um contacto epistolar traduzido ainda na
recepção de um exemplar autografado de Ambiente. A
verdadeira epifania que Jorge Barbosa representa para Pedro da Silveira («O meu
primeiro mestre de modernidade e, vá lá, de açorianidade também, foi Jorge
Barbosa, com o Ambiente»)
radica, primeiramente, na constatação de que a «realidade que ele
transmitia, de um Cabo Verde miserável em que as pessoas olhavam o mar como um
caminho a transpor, de salvação, tinha muito que ver com a nossa nos anos
de 1930-1940» (Silveira, 1987: 4), mas desemboca, posteriormente, numa outra
constatação, a de quão longe andam os escritores açorianos de uma atitude
idêntica à que tomaram os cabo-verdianos e, pelo contrário, se entregam a um
«bairrismo patrioteiro à Pinheiro Chagas» (1945a: 1), coisa a que já nos anos 20,
e em registo irónico, Nemésio descrevera como os «hinos à terra, no
estilo das caravelas e das cruzes de Cristo dos cinzeiros.» (21995:
88).
Acrescente-se
a isso o conhecimento, por parte de Pedro da Silveira, do Comandante João
de Deus Lopes da Silva, irmão de Baltasar Lopes, que aportava regularmente aos
Açores com o seu navio Nossa Senhora dos Anjos e constituiu um elo decisivo na
ligação a Cabo Verde e aos seus escritores (um deles, Manuel Lopes, a residir
na ilha do Faial desde 1944); o Comandante Lopes da Silva acabaria por
tornar-se também um dos propiciadores da renovação literária açoriana, pelo seu
papel aglutinador e também pela revelação da literatura brasileira a essa
geração de 40. Em mensagem electrónica de 17.09.2006, Eduíno de Jesus referia-se
a esse aspecto, dando conta das tertúlias com os jovens intelectuais de
Ponta Delgada que o Comandante organizava a bordo do seu navio, sempre que
por passava pela ilha de S. Miguel. E Pedro da Silveira, logo nesses
tempos, dava conta de ter encontrado na câmara de Lopes da Silva, a bordo
do Nossa Senhora dos Anjos, «livros de Jorge Amado, um dos seus
preferidos, livros sobre África e Cabo Verde e fotografias das Ilhas. Obras dos
jovens autores de Cabo Verde.» (Silveira, 1946) Mais tarde, explicitará ainda:
«Dos brasileiros das gerações de 22 e de 30, o que conhecemos devemo-lo
primeiro a João de Deus Lopes da Silva» (Silveira, 1986: 41), acrescentando,
para o seu caso pessoal, a intervenção de Manuel Lopes, que lhe enviava para as
Flores as obras brasileiras de que dispunha.
A
intervenção do escritor cabo-verdiano durante a sua estadia nos Açores não se
limitou, porém, a esse gesto de companheirismo literário: ele colaborou
na imprensa local, expôs no Faial um conjunto de pinturas suas e foi um
dos fundadores do Núcleo Cultural da Horta, em 1954, ao lado de outras
personalidades e intelectuais da cidade. E em 1950 proferiu na Horta a
conferência Os meios pequenos e a cultura (editada
no ano seguinte), em que se ocupa dos constrangimentos que afectam os
meios pequenos, dos prejuízos que daí advêm à criação cultural, sobretudo
quando, além de pequenos, os meios são igualmente tacanhos.
A
verdade é que, em virtude da conjugação de todos estes factores, a
nova literatura e a cultura de Cabo Verde marcaram presença nas páginas do
jornal A Ilha durante
cerca de uma década (1945-1954), embora como maior visibilidade nalguns
períodos. Poesia, narrativa, recensões críticas (em boa parte assinadas
pelo próprio Pedro da Silveira), ensaios de natureza etnográfica e
sócio-económica – tudo isso proporcionou ao leitor em geral um conhecimento do
arquipélago cabo-verdiano e indicou aos escritores açorianos em particular como
era possível desenvolver um projecto literário colectivo num espaço com tão poucas
condições, «com comunicações precárias com o mundo e, por conseguinte, privado
da maioria dos recursos culturais dos grandes meios.» (Silveira, 1945a: 1); por
via indirecta, a referência ao isolamento, à distância e às
reduzidas condições materiais constituía um argumento a mais numa estratégia
persuasiva que tinha em mente os destinatários imediatos do seu texto. E
quanto a autores, um rastreio rápido encontra aí os nomes de Jorge Barbosa,
Manuel Lopes, António Nunes, Pedro Corsino, Amílcar Cabral, Carlos Alberto
Monteiro Leite, Aguinaldo Brito Fonseca, Gabriel Mariano, além do próprio
Comandante Lopes da Silva (com algumas experiências líricas e narrativas, para
lá da entrevista e do ensaio etnográfico).
Será,
porém, na análise de alguns textos concretos que podemos encontrar a expressão
do ideário claridoso, o modo como Pedro da Silveira lê à distância a poesia
cabo-verdiana, tendo sempre em vista a situação interna açoriana, por
vezes indiciada de forma implícita, outras vezes directamente convocada e
analisada em termos contrastivos (e em termos provocatórios mesmo)
com o que ocorria na literatura do arquipélago a sul.
Um
desses textos poderá ser aquele em que procede a uma recensão crítica de Ambiente, de
Jorge Barbosa, justamente o texto que inaugura a presença cabo-verdiana nas
páginas de A Ilha.
Fazendo-a preceder de uma reflexão genérica sobre literatura e condição humana,
sobre o homem enquanto ser situado e concreto, e os diferentes modos como
a literatura pode aproximar-se (ou não) das suas angústias e
perplexidade e das suas aspirações, Pedro da Silveira coloca-nos, mesmo sem
referir os termos, no campo da habitual dicotomia arte pela arte vs arte
comprometida, entre uma arte individual e uma arte social, entre os escritores
cujas obras atestam uma «humanidade isolada, individual», e aqueles «cuja obra
bebe a essência vital que a anima na terra e nos dramas económico-sociais do
homem» (Silveira, 1945: 1) – admitindo embora a qualidade literária verificável
em qualquer dos domínios, de que os exemplos aduzidos são, em síntese,
Oscar Wilde e Marcel Proust, de um lado, e Graciliano Ramos e Erskine Caldwell,
do outro.
É a
partir dessa moldura teórica que Pedro da Silveira se ocupa da poesia de
Jorge Barbosa, realçando que o seu (re)conhecimento externo se deve
primordialmente ao facto de ela exprimir o «drama do homem de Cabo Verde,
prisioneiro do mar numas Ilhas pobres, esquecidas totalmente, assoladas pelo
flagelo da seca, ansioso por transpor esse mar em busca do pão que precisa para
não morrer de fome.» (Silveira, 1945: 1); no decurso da sua recensão, Pedro da
Silveira virá a reiterar as afirmações anteriores, especificando as
particularidades da obra de Jorge Barbosa, de um lirismo outro, diferente, o
dos «destinos presos a uma vida dura, dos anseios frustrados mas intimamente
nunca mortos das gentes crioulas, dos seus anseios de vida melhor em terra
melhor.» (idem, p. 2). A esta dimensão temática, conteudística, deve
acrescentar-se ainda (e por mera dedução da abertura do texto) um traço
discursivo facilitador da comunicação e da relação de empatia entre leitor e
autor, ou seja, «a comunicabilidade do estilo simples e directo e o
terra-a-terra das vidas movimentando-se nas suas obras» (idem, p. 1).
A
terminar o seu texto, a que uma adenda acrescentará ainda informação
geral sobre outros escritores cabo-verdianos, Pedro da Silveira apresenta
um quadro contrastivo que revela a intencionalidade autoral e dá ao texto
uma «utilidade» literária e cívica, para lá da simples divulgação jornalística:
«Tomarei ainda da obra de Jorge Barbosa (como da de outros escritores crioulos)
um exemplo para os intelectuais açoreanos, abstratamente especados à beira do
Gulf Stream, a magicar versos de amores impossíveis, à Soares de Passos, sem
olhos para o que os rodeia.» (idem, p.2)
Nos
seus diversos artigos sobre a literatura de Cabo Verde, Pedro da Silveira não
deixará de acentuar essa vinculação dos escritores ao seu tempo e espaço,
traduzida numa poesia com raízes na terra, num contexto em que «a realidade
é já imperativa, o poeta já não pode furtar-se a ela» (Silveira, 1950: 2), como
escreve ao recensear os Poemas de quem ficou, de
Manuel Lopes. Este último corroborará este modo de ver e ler, numa longa
entrevista concedida a Pedro da Silveira, lançando mão da metáfora «ficar os
pés no chão», para dar conta do propósito dos claridosos quanto a uma
arte enraizada no seu próprio meio, embebida «do húmus autêntico das nossas
ilhas» (F.F.-M, 1950: 2).
A
dimensão literária será apenas um dos aspectos a reter da leitura da Claridade e
da atenção prestada pelo poeta açoriano à cultura cabo-verdiana em geral. Ele
não deixará de referir-se a uma outra componente, a que diz respeito à natureza
social, histórica de Cabo Verde, que diferentes ensaístas ajudam a
compreender. Se no texto em que entrevista o Comandante Lopes da Silva
(Silveira: 1946: 1), coloca os ensaios de história económico-social de Simão de
Barros no mesmo plano de importância dos textos criativos dos principais
claridosos, enquanto factores de conhecimento da realidade de Cabo Verde,
mais tarde, ao ocupar-se da nova fase de Claridade, registará que ela «peca por demasiado
circunscrita à literatura», lamentando a ausência de «artigos e notas sobre os
cruciantes problemas da terra crioula», bem como a ausência de nomes como os de
Jaime Figueiredo, João Lopes, António Nunes e Teixeira de Sousa, cuja
participação viria valorizar a revista, conferindo-lhe uma configuração mais
abrangente (Silveira, 1949: 2)[1].
Na
recensão aos Poemas
de quem ficou, de Manuel Lopes, deixou-nos Pedro da
Silveira uma anotação que nos remete já para o interior da própria poesia, para
o impacto inicial de Jorge Barbosa na descoberta do seu caminho poético:
“Lembro
os tempos há quatro ou cinco anos atrás, quando me foi possível tomar um
contacto mais directo com a nova Literatura Cabo-verdiana e procurava já
encaminhar-me – tão às cegas – no sentido da açorianidade nalgumas pobres
tentativas poéticas. Jorge Barbosa foi então para mim como a luz a indicar-me
uma porta no meio da noite. Foi este poeta humaníssimo, com o seu Ambiente,
quem me afinou o ouvido para escutar os ruídos da banda de lá – a mão que se
estendeu para mim e me levou para lá da porta. E a mesma sensação, com maior ou
menor intensidade, tiveram outros do meus companheiros.” (Silveira: 1950: 2)
Na
verdade, uma das vozes que mais repercutem no primeiro livro de Pedro da
Silveira, A Ilha e
o Mundo (1952), é a de Jorge Barbosa,
embora sem descurarmos a presença de Manuel Lopes e António Nunes, que
participam igualmente nesse diálogo intertextual.
A
interpelação directa de Barbosa no poema 3 da sequência «Êxodo» é
apenas um traço pontual das afinidades que a poesia de Pedro da Silveira
manifesta com a de Jorge Barbosa, facilmente detectáveis na idêntica
percepção do «mundo abreviado» da ilha: cercado, preenchido por vidas monótonas
e de pequenos acontecimentos, no qual se recorta o perfil vago de figuras
humanas divididas entre o apego à terra e o apelo do mundo, finalmente anuladas
pelo peso da rotina e «encharcadas de solidão». Num quadro assim, a
irrupção do grande mundo e dos seus sinais, através do vapor, alterando o
ritmo da vivência quotidiana, reveste-se de aspectos festivos e excepcionais
(«o dia santo de São Vapor») – mas este é também um momento dramático, pois
nele se concretizam ou frustram os desejos de partida e a aspiração de uma vida
outra, melhor, em fuga às fomes insulares e à reduzida dimensão do espaço.
O
poema Ilha, na
escassa dimensão dos seus quatro versos, resume a situação insular, nas
vertentes histórica, geográfica, individual e colectiva e num registo
que deixa de ser uma simples expressão localista para tornar-se,
em outro contexto estético, a expressão da mesma condição humana de que
falava Nemésio, a respeito de Mesquita.
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