MENINA 25 ANOS DEPOIS
Vem do lado da luz e faz um vagaroso intervalo na
pressa do trânsito, tão veloz e tão compacto.
É um tempo novo que os seus olhos abrem no que
resta da manhã: a cidade tinha uns taipais de névoa e foi a sua força que os
rompeu. Barcos aflitos apitaram no Tejo o desassossego da rota duvidosa.
São estes os paradoxos do Tempo: quem procure o seu
bilhete de identidade achará cifras e datas, uma cronologia pesada. Porém, nem
a voz nem o olhar nem o corpo solto e leve se conjugam com o tempo registado. E
a luz, aquilo a que chamo luz, mistura de respiração e olhar, retrato e volume,
ruptura e movimento, essa continua a iluminar quem dela, mulher-menina, se
aproxima. Tal como há vinte e cinco anos ela transporta as quatro estações na voz,
os dias da semana no olhar, os meses no rosto, as horas nas mãos.
É o tempo condensado de uma viagem entre o campo e
a cidade.
Celeiro de emoções, adega de perfumes, eira de
saudades, sótão de memórias, a sua voz é, ainda hoje, o registo pessoal da luz da
aldeia contra a névoa da cidade.
Rosa Luz
Há uma rosa a arder. Já não é lume
Apenas foco de luz sem combustão
No fósforo mal aceso deste ciúme
Só sobejaram os sinais da tua mão
A tua boca foi o botão anunciado
Os teus dedos o que ficou da haste
Procurei a tua voz em todo o lado
Mas foi na rosa ardida que ficaste
BILHETE NO BOLSO
Às vezes está tão longe
Às vezes está mais perto
Fala e ninguém o ouve
Como telefone no deserto
Vai dar uma longa volta
Pode morrer e não morre
Com um bilhete no bolso
Anda a pé, viaja e corre
Apanha a chuva dos outros
Porque é poeta concreto
Suja as mãos fica na rua
E desenha um ângulo recto
Traz às costas uma dor
Sem peso nem dimensão
Com um bilhete no bolso
Já não ouve o coração
Faz os poemas devagar
Num forno feito de fogo
Que nasce da combustão
Duma voz fora de jogo
Defende sem bem saber
Justos contra tiranos
Com um bilhete no bolso
Anda assim há muitos anos
Um quase nada lhe chega
Para o que vai sonhar
Um futuro sem a morte
Em todo e qualquer lugar
Escondido na multidão
Atravessa as ruas só
Com um bilhete no bolso
Há-de voltar para o pó
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