Gazeta das
Caldas
«Que paisagem apagarás» de Urbano Bettencourt
Percebe-se que Urbano Bettencourt (n.1949) tem o gosto
da miscelânea. Na linha de Camilo Castelo Branco («Narcóticos») e Carlos de
Oliveira («Aprendiz de feiticeiro»), Urbano Bettencourt reúne em 183 páginas um
conjunto de narrativas, memórias e aforismos. Ficcionista, poeta e ensaísta,
uma fina ironia atravessa a sua obra desde 1972, data do seu inicial livro
«Raiz de mágoa».
O primeiro texto regista uma conversa num comboio entre Del Guidice e Antero de
Quental: «Vou atrás de uma mulher que existe, desde o momento em que o autor
lhe deu vida pela escrita. Você vai atrás de uma vaga figura possível, a
revolução». Cruzam-se memórias de Raúl Brandão no PIco («Aquilo foi um sonho e
nenhum sonho se chega a concluir – o sonho não cabe no mundo») e de Romana
Petri: «a garrafa de aguardente de figo – Romana Petri talvez preferisse um
copinho de angélica como ela tontamente insiste em escrever». Mais à
frente as ruínas de uma abadia em Howth (perto de Dublin) abrem para uma
memória de James Joyce («a luminosa manhã de Junho de 1904 em que Leopold Bloom
saiu de casa para comprar rins de carneiro») enquanto Álamo Oliveira aparece no
Corvo: «Desembarcados no Porto da Casa, tomámos rumos diferentes. Álamo
Oliveira foi levado pelos seus anfitriões do teatro e eu meti-me a caminho da
casa de D. Crisantema».
Também comparece uma memória da guerra colonial: «ainda te vais lembrar do
tempo de África. Das gentes que viveram um pouco melhor graças a ti. Caminhos,
estradas, casas, água potável. Mas a sombra das pessoas que destroçaste há-de
seguir-te como um cão açoitado. E as casas a que deitaste fogo vão continuar a
arder nos teus olhos. Como uma festa ou um inferno. Estas coisas apagam-se
alguma vez?»
Por último um aforismo breve: «Reciprocidade – Quando o censuraram por não ir
ao funeral do seu companheiro de letras, o escritor limitou-se a perguntar: – E
ele vai ao meu?».
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