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485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Do escritor Joel Neto


Do Corvo a Nova Iorque.
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Como chamais a isto a que eu chamo viver?



“Mas também é preciso viver…”, insiste ele. Censura-me, a verdade é essa, e não está sozinho. Sentou-se à minha frente com queixas de outros elementos da família – que não apareço, que nem sequer falo ao telefone, que sou (isto não o diz, e talvez também não o pense) um sacana egoísta obcecado com o trabalho –, e eu chego a perguntar-me se devo de facto defender-me.

Devo-lhe muito, mas nem é por isso que o prefiro aos restantes tios. Por um lado, foi o primeiro da família (e o único até à sua geração), a estudar – à noite, de permeio com uma profissão exigente e competitiva, à custa de sacrifícios que nenhum de nós considerou. Por outro, a vida guardou-lhe os mais difíceis testes de força e de carácter, e ele respondeu-lhes com uma integridade quase sobre-humana.

Admiro-o, e, quando fui para Lisboa, nos alvores dos anos 90, enganava-me e chamava-lhe pai. Era natural, porque os dois são gémeos idênticos, aliás com larguras de gestos e tons de voz parecidos. Mas, principalmente, senti-me sob os cuidados de um pai, naquelas semanas em que me acolheu. Não poderei esquecer-me. De maneira que me defendo, realmente, mas com factores circunstanciais: inoportunidades, coincidências infelizes, mal-entendidos.

Estamos no Rocha, a comer uma telha de polvo, e ao nosso lado a Catarina e a Odete esforçam-se por se concentrar uma na outra. Suspiro: quem sabe não consigo ser melhor sobrinho, agora que chego à segunda metade da vida – melhor sobrinho e melhor primo e melhor tio e melhor irmão e melhor filho. E, no entanto, aquelas palavras continuam a reverberar em volta: “Também é preciso viver…”

Porque, aparentemente, não é viver, isto que faço: é trabalhar apenas – de dia e de noite, de semana e ao fim-de-semana, no computador e até na hora da mesa. E a Catarina (isto o meu tio também não diz, é demasiado cavalheiro para isso) não ajuda. Enfia a cabeça nos livros de manhã e só a tira à noite. Às vezes vai ao ginásio e, mesmo assim, volta para o trabalho.

Ocorre-me brincar: não se preocupe, tio, que a reforma já não vem longe – não tarda teremos tempo para tudo. Mas, entretanto, lembro-me de ainda ontem ter visto o A., que foi colega do meu pai, a atravessar a Rua da Sé. Vi-o na passadeira à minha frente e parei diligentemente o automóvel. Ele meneou a cabeça e, olhando para o interior do carro, a perscrutar a identidade do motorista, chegou-se para trás e mandou-me passar a mim.

Nem me reconheceu: fez simplesmente um gesto com o braço, a mandar-me passar, porque tinha toda a prioridade mas nenhum compromisso. Entristeceu-me imenso, e imaginei-me a mim próprio a mandar passar os carros, já velho – sem horas para estar em lado nenhum, sem uma frase para escrever ou um parafuso para apertar ou um apêndice para extrair.

Creio que foi por isso que deixei de fumar: porque gostaria de não ter de viver assim, um dia. E que passei a pôr-me aos saltos ao final da tarde, e que comecei a comer alface: para, se de facto chegar à reforma, haver ao menos uma possibilidade de não ter de atravessá-la a mandar passar os carros – como aquele homem também não tem de fazer, mas faz porque quer, ou porque está deprimido.

Quero uma reforma saudável ou reforma nenhuma. Para que me serviria ela, no fundo, se não para trabalhar melhor?

De maneira que, quanto ao meu tio, me fiquei pelas inoportunidades. Ademais, tenho as pazes feitas com o inevitável. Primeiro, já não vou ser melhor pessoa. Depois, li o suficiente sobre a vida dos escritores, e mesmo que não tivesse lido sobre a vida deles tinha lido os seus livros: nunca um escritor deu um grande homem de família.

O resto não é fácil explicar a alguém que traz tão boas intenções, mas a verdade é que a família está quase sempre na origem das melhores e das piores coisas da vida – de todas as vidas. No fundo, aliás, é aí que o escritor estará sempre: às voltas na família. Ela julgá-lo distante, até alheado, não só faz parte do processo, mas chega a ser necessário. E, entretanto, trabalhemos, que ainda não vi melhor maneira de viver.

Foto: © António Araújo
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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