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quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Da Califórnia de LUCIANO CARDOSO


ADELINO(saudade eterna)TOLEDO

“Rima que abre e fecha/O segredo da saudade/Mal o poeta nos deixa/Morará na eternidade.”

Moro cá, no planeta que nos acolhe, há sessenta e tal anos, dois terços dos quais “imigramados” longe do mimoso cantinho que me viu nascer e crescer de menino para rapaz. Já lá vão quatro décadas que, pelo caminho, me roubaram alguns bons amigos mais ou menos da minha idade. “Porquê eles e não eu?” é a esquisita pergunta que me acode sempre que outro se ausenta para o seu sono eterno. Porque em nada me tenho por melhor, exceto na sorte de por cá viver mais uns dias, trato de aproveitá-los o melhor que posso fazendo contas à vida, por vezes, rimando mesmo o que me vai na alma. Detesto senti-la triste, como se sentiram tantas outras, por toda esta vasta comunidade luso-californiana e também na Ilha Terceira, com a recente partida do Adelino Toledo – uma pessoa afável e um improvisador formidável que nos deixa a saudade a arder.

Quando, ainda bem miudinho, ouvi pela primeira vez da boca de um imigrante que vinha da “América de Cima” para “matar saudades” na Ilha, ingénuo, deixei-me ludibriar pelo metafórico simbolismo da curiosa expressão. “Matar a saudade? Que mal lhe fez?” Obviamente, puto tenro e alheio às duras realidades da vida, desconhecia que aquele era um tema tenso de gente embarcada com passagem de ida sem volta certa ao seu lugar. Só mais tarde, quando também imigrei, me apercebi cá por dentro do quanto nos dói por aí fora. O Atlântico é imenso, a América enorme – sobrevoá-los durante horas e horas a fio, dá-nos logo a ideia de termos vindo parar quase aos confins do mundo. A distância é pasmosa. O “salto” nunca foi fácil.

Uma vez cá, no entanto, que remédio senão fazermos das tripas coração e arregaçarmos as mangas para a vida que não se compadece com quem demora em adaptar-se. O ilhéu fá-lo conforme pode e, quase sem se aperceber, na imensidão da diáspora, lá vai reconstruindo a sua pequenina ilha onde se refugia para poder matar essa tal saudade que não o larga. Trabalhador como ninguém, labuta até as forças o permitirem sem, contudo, deixar o saudosismo roubar-lhe a boa disposição. Moirejar para vencer não significa deixar de se divertir. Ao menos com os terceirenses sempre foi assim. Lá ou cá, tristezas não pagam dívidas.

Se é certo que devemos à Califórnia as oportunidades que nos deu, também suponho que este magnífico estado americano agradece o valioso contributo que lhe prestamos, não apenas do nosso vigor laboral como igualmente da nossa partilha cultural. Saudosos, mas bem-dispostos, adoramos as nossas festas e a alegria dos nossos arraiais sempre prontos a curarem as mágoas a quem os frequenta. Ninguém escapa ao fulgor tradicional do típico arraial terceirense, genuíno na sua garrida animação, onde não pode faltar o despique improvisado duma boa cantoria ao desafio. Desde muito novo, lá nos palcos e praças da ilha, habituei-me a apreciar esta arte soberbamente rimada por intérpretes dotados duma veia repentista sem rival.

Cantar de improviso é um dom excecional só ao alcance de quem nasceu com esse típico talento. Adelino Toledo foi um deles. Ao longo do seu quase meio século por estas bandas, a comunidade local teve o ensejo de o ouvir e aplaudir, acarinhando o homem e o artista. Mereceu, sem dúvida, todo o carinho que lhe foi amplamente dedicado aquando da publicação do livro escrito por Liduino Borba, “Adelino Toledo – Uma Voz na Diáspora”, há já meia dúzia d’anos, que também deu brado na Terceira, mormente nas Fontinhas, sua freguesia natal, em vibrante sessão cultural presenciada por centenas de conterrâneos orgulhosos do seu peculiar percurso de elogiado poeta popular.

Jamais esquecerei o delicioso pormenor da lírica cereja colocada com brio no belo bolo que foi esse emocionante evento em sua honra. Presente, na qualidade de vereador para a Cultura no concelho da Praia da Vitória, o meu velho amigo Paulo Codorniz, ao botar palavra, fez questão de sublinhar a famosa quadra ali cantada pelo Adelino ao falecido José Pereira, em prévia viagem de saudade: “Eu vim ver-vos face a face/Matar saudades sem fim/Porque se eu não as matasse/Elas matavam-me a mim.” Uma quadra para sempre ligada ao imaginário poético da diáspora, a que o versado vereador ousou replicar com o melancólico tom que nos toca o fundo da alma comovida: “Mas se hoje aqui voltaste/No tempo que agora corre/É porque não as mataste/A saudade nunca morre.”

Morreria eu inconsolado se aqui não interviesse para acenar ao Paulo e me despedir do Adelino com toda a amabilidade que ele sempre me dedicou: “O poeta tem magia/no seu jeito de rimar/improvisa poesia/para nos deliciar/até que chega o dia/ da saudade o levar.”

Que a sua alma descanse em paz.
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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