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terça-feira, 27 de novembro de 2018

Homenagem ao escritor açoriano DANIEL SÁ


Daniel, o açoriano

Lélia Pereira da Silva Nunes

«O Sul onde há saudades da ilha. Da ilha dos Açores, que são nove. E Santa Catarina imagina-se também ilha, só para ser mais parecida à Terceira ou a São Jorge.
Ficaram por aqueles fundos do Brasil o Espírito Santo e falas da ilha que são nove. Um Divino com sotaque tropical e vozes com requebros de tons rubros[...]

Vocês continuam por cá. E nós estamos aí.»
Daniel de Sá, In: O meu Brasil português, 2008

Que mundo engraçado é este! Ora, é imenso, gigantesco, distante. Separado por fronteiras e oceanos. Ora, é pequeno, muito perto, quase um vizinho à nossa porta. Aberto, sem limites. Apenas, um rio que aparta ou cerca e pontes construídas que se entrelaçam e aproximamtes mall world piccollo mondo, como escreve Onésimo Teotónio Almeida ao fim de suas «notas bárbaras» cheias de coincidências. De repente, o «Cá e o Lá» desaparecem e fica apenas o «Nosso» mundo pequeno, a nossa mundividência.
Tudo isso tem a ver com a minha ida ao Supermercado numa manhã de sexta-feira e o curioso diálogo que travei na «boca do caixa» com um jovem ajudante enquanto tirava as compras do carrinho pensando na turbulência da economia brasileira e na alta galopante dos preços. Foi quando ouvi uma voz juvenil perguntar:
–A senhora precisa de ajuda com as compras?
Agradeci sem deixar de observar a beleza do rapaz. Porte elegante, muito loiro e dono de lindos olhos azuis. Não resisti e disse à funcionária do caixa: – Que «alemãozinho» bonito! O ajudante escutou o elogio retrucou no ato: – eu não sou de origem alemã, não. Sou bem «manezinho», nascido na Ilha, sou açoriano. Aliás, «açoriano de família», respondeu com tanta convicção e naturalidade como algo fatual e indiscutível. Sem pestanejar «dei corda» e puxei conversa...
– E seus pais? Também são açorianos? De que Ilha?
– Somos daqui e, apontando para um morro próximo, enfatizou: «somos todos açorianos de Floripa». Nossos antepassados vieram dos Açores. E, de inhapa, ensinou-me que os Açores não são «uma Ilha». São nove ilhas. Deve ter outras mais como na Ilha de Santa Catarina. Nós não sabemos de qual delas veio a nossa família. Queria muito saber...
Nesta altura, eu já esquecera a minha pressa, as compras jazidas no carrinho da loja e o almoço no Sul da Ilha tratado com o amigo Arante Monteiro que há anos luta para conseguir a doação de uma coroa do Divino Espírito Santo para a comunidade do Pântano do Sul.
Enfim, abortei minha saída apressada e voltei toda atenção àquele menino humilde que me encarava com seus enormes olhos azuis, falando de si e dos seus, do que entendia ser sua história. Ao mesmo tempo seu jeito de olhar parecia tão disperso, longe mesmo... Decididamente aquele jovem trabalhador não era um ajudante qualquer.
– Como sabes de tudo isso? Quem te ensinou? Foi na escola? Aula de História? Fui perguntando de afogadilho. Oras, respondeu sorrindo – sem perceber muito bem a razão de tantas perguntas – aprendi na escola, em casa, por aí. Gosto de ler. Depois, sempre soube que quem nasce aqui na Ilha é manezinho e açoriano.
– A propósito, não disseste o teu nome. Como te chamas? Já de olho nas letras bordadas no bolso do uniforme. Eu sou «DANIEL». Daniel Bittencourt Borges. Bittencourt da mãe, Borges do pai. Por uns segundos fiquei parada, sem fala, comovida mesmo, ouvindo aquele Daniel diferente, mas igual à cerca de 70 milhões de pessoas em todo o mundo que são autistas e, na maioria das vezes, sem comprometimento da capacidade intelectual. Sim, Daniel é autista, tem 22 anos, integra um programa de inclusão social e «é muito trabalhador, responsável e inteligente», afirma um dos gerentes do supermercado.
Na hora veio, na memória da saudade, a lembrança de outro Daniel açoriano, «o de Sá». Muito gostaria de enviar-lhe um e-mail narrando a história desse Daniel de cá. Ele, por certo, ia gostar de saber e não deixaria de botar a sua palavra indelével e solidária, bem típico da sua personalidade humanista. Entretanto, justo naquela enxovalhada manhã de sexta-feira, 27 de maio, fazia três anos que o escritor açoriano Daniel de Sá, partira. Como não lembrar? Como não pensar na coincidência ou na sincronicidade do nome e da data?
Naquele final de semana, volta e meia revivi a cena do supermercado e rememorei Daniel de Sá que, recentemente, foi homenageado com o livro Rememorando Daniel de Sá: escritor dos Açores e do Mundo (Ver Açor, 2016), coordenação de Francisco Cota Fagundes, Susana L.M. Antunes e António M.A. Igrejas. Uma coletânea de vinte e três estudos, distribuídos por 500 páginas, sobre a obra do escritor e evocações do homem, do amigo que convivemos, admiramos e temos imensa saudade.
Escrevi «Daniel de Sá: a indelével presença», integrante do lado mais pessoal do livro, a Parte II – Rememorações do Homem e do Escritor, ao lado de seus amigos de uma vida e outros de fé, como eu, que foi privilegiada por sua amizade exemplar e recompensada por beber na fonte do seu saber. Na apresentação ocorrida no Teatro Micaelense de Ponta Delgada, o professor e escritor Urbano Bettencourt referindo-se a esta parte do livro, afirma com propriedade absoluta: «são textos que nos trazem sinais do encontro e da convivência com o autor, imagens do homem para lá dos textos, a troca de correspondência que deixa transparecer gestos de amizade, acontecimentos miúdos da vida, os circunstancialismos do quotidiano, as preocupações do cidadão que cada escritor também é.»
O convite para participar desta obra coletiva em torno de Daniel permitiu-me passear por canadas da memória e por arquivos de lembranças salvaguardadas como inegáveis ensinamentos. Tal qual a lição sobre o uso do «c mudo» no Português de Portugal que caiu com o novo acordo ortográfico. Veio em forma de um delicioso poemeto em redondilhas o puxão de orelha sobre o não emprego do «c» na minha escrita. Purista da língua, não mais escreveu palavras que tiveram sua grafia alterada, assumindo uma atitude de negação ao famigerado acordo ortográfico.
Reverenciei o intelectualbrilhantee a sua expressiva e criativa produção literária. Milhares de crônicas, poemas, artigos de jornal, prefácios, textos, notas, mensagens do correio postal às eletrônicas. Livros? Dezenas.
Daniel será sempre evocado por sua escrita de respeito à condição humana e de amor a terra, desvendando-lhes a alma, gravando verdades ou, simplesmente, contando histórias – retratos da vida real – harmonizando-as com o tempo que passa, com a inesgotável memória e seu universo ficcional que permanecem na infinita riqueza de sua obra literária versátil e na saudável lembrança de suas virtudes: sábio, equânime, gentil, dadivoso, humilde, fiel aos seus princípios e crenças.
A digressão afetuosa sobre a pessoa de Daniel de Sá e seu universo é o meu jeito de dizer o que penso sobre o papel que ele desempenhou e a dimensão do seu legado para a história cultural dos Açores. Mas, sobretudo, é um tributo a um ser luminoso, de uma humanidade cativante. Um homem de carácter generoso, afável na maneira de ser, de estar e encarar a vida que vale a pena ser vivida.
Voltei à freguesia da Maia em março de 2015. Um dia após o seu aniversário e da fundação da «Associação Daniel de Sá» por familiares e amigos. Visitei o campo santo, a sua última morada. Percorri as ruas da Maia, admirei o Solar de Lalém dos encontros literários e me detive na antiga casa da Rua dos Foros, n°8. Encontrei a Maria Alice – a amada «Calie» e recordamos o distante junho de 2004 quando, levada por Urbano Bettencourt, cheguei à Maia para conhecer Daniel de Sá.
Daniel, o sábio, ensinou, apontou caminhos e mostrou-nos a importância da perceção das diferenças por meio da compreensão e do respeito. Mostrou o amor solidário na desigualdade que une e torna igual.
Voltei ao Supermercado para dar ao jovem Daniel um livro sobre o Arquipélago de autoria do Daniel de Sá. Ao entregar a prenda contei que conhecia os Açores e que nas Ilhas viviam muitas famílias com o sobrenome Borges e Bittencourt, como o dele. Daniel, não esboçou a menor surpresa. Apenas, abriu um largo sorriso falando com sotaque ilhéu:
– «Pois então, não disse pra senhora que sou açoriano?»
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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