FILHO de ALGUÉM
Dezembro, quando chega, não engana. O seu frio gela e castiga sem dó corações amargurados, sem dúvida.
“És um filho de ninguém.” Há muito que o seu o tortura com o desalento de anos e anos rendido às mesmas perguntas sem a resposta que procura. Daria tudo para encontrá-la. Busca-a desde a infância, quando os seus pais adotivos lhe confidenciaram o rude golpe. “A tua mãe faleceu ao dar-te à luz. O teu pai quase endoidecia por monde da droga que o levou a ser repatriado para a sua atlântica ilha natal, onde cremos que ainda mora.” Foram palavras fulminantes que lhe abriram uma ferida funda, dificílima de sarar. Carcomem-no por dentro num roer miudinho, persistente, incessante. Tenta digerir o facto de ter sido adotado mas não lhe obriguem a engolir o porquê do pai nunca mais o ter procurado. É uma dor demolidora. Tê-lo-á o seu progenitor posto mesmo de parte?
Não quer crer. “Como doi ser-se filho enjeitado.” E ter-lhe-ia doído ainda mais, não fosse o doce aconchego do lar adotivo a proporcionar-lhe o conforto dos afetos que iludem tantas crianças abandonadas à superficie da Terra. Sente-se afortunado por não ter sido uma delas. De menino franzino passa a rapaz resoluto, bom estudante, forma-se homem personalizado e conhece a mulher dos seus sonhos que lhe dá um filho antes de morrer num acidente aparatoso, deixando-o de coração estilaçado. Doer-lhe-á para sempre, sabe-o bem. “Não há felicidade completa”, haviam-lhe dito e aconselhado também que a chave da solução não está na lamúria nem muito menos no desânimo.
Toma o filho nos braços, olha-o nos olhos, cobre-o de mimos e aconchega-o junto ao peito auscultando-lhe o coração. Bate-lhe pausadamente em ritmo que o faz feliz. Pudera não. É sangue do seu. E o seu, de quem terá sido? A questão revisita-o e atormenta-o agora ainda mais. Tem de saber a verdade sobre as suas origens. Custe o que custar. A curiosidade de encontrar quem lhe deu a vida e dela preferiu ausentar-se, intriga-o de sobremaneira. Acha-se com direito a uma explicação sensata sobre a sua raíz genética. Gostaria tanto de poder um dia abraçá-la.
O Natal aproxima-se e apanha-o a sós com o seu menino a pedir-lhe esse mavioso sabor da festa mais linda do mundo. Não hesita em fazer-lhe a vontade. Arma-lhe o presépio, enfeita-lhe a árvore e, mesmo sem saber ainda bem como, promete-lhe um presente que jamais irá esquecer. Muda-lhe a fralda, prepara-lhe a refeição, canta-lhe uma cantiga de embalar e vê-o adormecer nos seus braços com um sorriso angélico a merecer-lhe dois açucarados beijos. Molha-os uma lágrima só a regar-lhe aquele delicioso momento de felicidade inconfundível, mas incompleta.
Insaciado, atira-se ao café com vontade de fazer serão. Ativa o computador, abre o Facebook e nota uma estranha mensagem dum desconhecido qualquer a solicitar-lhe amizade. Não se espanta porque é assim a hodierna convivência cibernética, onde não faltam amigos e amigas que mal se conhecem. Só que aquele quer conhecê-lo. Diz-se “…compadre dum sujeito sem computador nem telefone que sobrevive subsidiado pela magra “esmola” com que o Governo das suas Ilhas de Bruma sustenta os deportados expulsos dos States. Retornara ao seu cantinho ilhéu devido à puta da droga que, no espaço de um ano e pique, lhe virara a vida do avesso. Perdera o emprego, a casa, o carro e até o juízo, depois de perder a noiva que falecera de parto deixando-lhe um filho por criar. Incapaz de cuidar dele, deixou que fosse adotado e nunca mais o viu, mas tudo daria para poder voltar a vê-lo. Tomei a liberdade de te contatar por me terem dito que a tua história trilha precisamente o percurso inverso. Darias tudo para abraçar o teu pai…?”
Nem se pergunta. Dá tudo e mais alguma coisa. Sem demora, recolhe os dados, sacode as dúvidas, afina os detalhes, marca as passagens e, profundamente emocionado, levanta vôo com o seu menino ao colo. Beija-o e garante-lhe que não é um vôo qualquer aquele que os leva à tal atlântica Ilha de Bruma mesmo na gema do inverno. Trata-se de um sonho que desde há muito alimenta – poder aterrar, finalmente, nos braços ternos do seu pai. Que melhor prenda poderia oferecer ao seu filho?
Um pai natal desmistificado, de carne e osso, sangue do seu sangue, germe do seu ser, espera-os desejoso de os abraçar… – …como o fizeram lindamente naquela inesquecível noite de consoada sob uma chuva miudinha de lágrimas candentes, comoventes, cativantes a diluírem-lhe a velha mágoa. Deixava-o, finalmente, sorrindo como há muito não sorria ao ver o seu rebento fazer sorrir o seu pai. Alegria indescritível aquela de ser agora um legítimo “filho de alguém”.

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