Nos Açores a euforia é total. O Santa Clara conseguiu subir à primeira divisão e as comemorações prolongaram-se até à manhã de ontem. Ninguém dormiu, não foi feriado, mas a julgar pelas ruas desertas foram muitos os que decidiram decretar uma "tolerância de ponto individual". Agora prepara-se o futuro, a equipa deverá ser renovada e o governo regional promete apoiar para assegurar a manutenção. Os apoios oficiais, aliás, não têm faltado e Carlos César é uma das presenças assíduas no Estádio de S. Miguel, com direito a volta ao relvado e a visita às cabinas dos jogadores antes do início do encontro. Na Terceira, a segunda ilha mais importante do arquipélago, a promoção do velho rival deixou metade da população em estado de choque.
Delegação do Sport Lisboa e Benfica, conforme demonstram as cores do equipamento e o emblema, o Clube Desportivo Santa Clara nunca deixou por mãos alheias o seu espírito popular, alicerçado no crer e na determinação dos seus ferverosos adeptos e simpatizantes.Criado, oficialmente, em 1921, teve como primeira designação "Santa Clara Futebol Clube" mais tarde alterada para "Clube Desportivo Santa Clara", depois de um diferendo com a Associação de Futebol que o levou à formação, com outros clubes, de uma liga própria. Curiosamente, o seu primeiro símbolo foi um leão e o seu lema "Mens sana in corpore sano".É assumidamente um clube de bairro, cujo o nome está associado ao de Ponta Delgada. Santa Clara é uma paróquia da freguesia urbana de S. José, contígua ao porto comercial e dela se estende para o mar, junto ao farol, a ponta "delgada" que havia de consagrar o maior e mais desenvolvido concelho dos Açores, a comemorar este ano 500 anos de existência.A colectividade era constituída por homens simples, operários, marítimos e mestres pedreiros que começaram a jogar à bola junto ao matadouro-frigorífico e, mais tarde, no campo-mata da doca, verdadeiro pulmão da cidade. Notória a sua relação com o mar e com o movimento portuário.As primeiras camisolas eram feitas de meias tingidas de vermelho, as peúgas eram de lã da ilha de Santa Maria, as botas de couro de bezerro e a bola com atacadores de bezerro. Os próprios jogadores procuravam no lixo da costa de Santa Clara solas e sapatos velhos para fazer em casa os tacos para as botas.Nos anos 40 o equipamento passou a ser comprado em Inglaterra pelos marinheiros da companhia dos navios Carregadores Açorianos, em contrabando, claro está. Para fugir ao controlo aduaneiro em tempo de fronteiras fechadas e sem Comunidade Europeia à vista, esperava-se pelo dia em que um amigo do Santa Clara estivesse de serviço para dar um jeitinho, o que de resto não era difícil.O Clube Desportivo Santa Clara, apesar de ter andado com a casa às costas várias vezes até chegar ao Largo Mártires da Pátria, onde está hoje, cultivava alguns rituais que enriqueceram a sua mística. Sempre procurou treinadores ligados à vida militar, marinha, ou mesmo estrangeiros, mas os jogadores eram naturais do bairro e as mulheres tinham papel preponderante nas preces à padroeira. Um contágio que passava de pais para filhos, na lógica do trabalho, humildade e família coesa.Muitos foram os treinadores famosos e, de entre eles, um nome marcou o trajecto de glória do clube: Henrique Ben-David - ilhéu de Cabo Verde ao serviço do Atlético da Tapadinha - vestiu inúmeras vezes a camisola de Portugal, mas uma arreliadora lesão levou-o para os Açores e para o Santa Clara onde promoveu uma verdadeira escola de formação que permitiu ao clube ganhar tudo o que era para ganhar no arquipélago.Vieram, mais tarde, os campeonatos nacionais, a modéstia dos investimentos e a necessidade de sacudir a ilha com algo mais galvanizador. Apostando nas camadas jovens, nunca descorou a ideia da profissionalização. Continua a conquistar títulos açorianos em todos os escalões e a promover jogadores como Carlos Freitas ou Pauleta.Há cerca de quatro anos, e numa perspectiva de desenvolver os Açores, os apoios de âmbito privado, camarário e governamental têm permitido outros sonhos, tornados agora realidade, pelas mãos da dupla Manuel Fernandes-António Oliveira, com o contributo natural de outros antecessores e de uma equipa dirigente deveras notável.Uma sede na Baixa da cidade e um complexo desportivo em construção constituem património dum clube em expansão que, à causa da cultura, designadamente música e teatro de revista, deu imprescindíveis contributos.Outras modalidades alimentam o clube, mas é o futebol o grande responsável pela adesão contagiante dos seus adeptos.É evidente que, com aumento quantitativo e qualitativo de parque desportivo açoriano, com o incremento das camadas jovens e a dinâmica sócio-económica que permite uma melhor promoção dos Açores, o espectro do futebol profissional teria que ser equacionado mais dia menos dia. E é também natural que tenha sido um clube emblemático de São Miguel o primeiro a conseguir tal proeza, pois os objectivos alcançados e a consolidar são directamente proporcionais ao número de habitantes da ilha, à vitalidade empresarial e ao próprio funcionamento das regras do mercado.Ao congregar a mística que lhe é característica conquistada ao longo de 78 anos pelos Açores, continente e comunidades de emigrantes dos EUA e Canadá, e o interesse dos comerciante e industriais de São Miguel, pode continuar como símbolo de um povo que se liberta, dando expressão a uma frase muitas vezes repetida: Santa Clara, retrato da alma popular - milagre de vontade.O Santa Clara na primeira pôs a ilha num verdadeiro vulcão.*jornalista, deputado regional independente pelo PSD, autor de um livro em preparação sobre o Santa Clara.
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