VITORINO NEMÉSIO
QUANDO cheguei a Coimbra, depois-de um curto estágio na pensão Pópó, entre o Beco da Cruz e os Palácios Confusos, instalei-me em casa da Mariquinhas do Leite Morno, numa república de ilhéus onde larguei a pele da metamorfose de bicho para caloiro. Já não resta pedra sobre pedra de semelhante fundação. O próprio Leão, que eu via ao despertar com seus inconvenientes versos camonianos, está hoje desmontado e arrumado; num triste pátio dos Grilos, consumada a segunda e inglória rendição da Bastilha. A nossa velha servente, que era belfa do beiço de cima e se chamava Mabília, em vez de honrar a seu romântico nome suprindo-nos como musa a amor nas fomes sentimentais deitava-nos abaixo as santas ilusões denunciando algumas inocentes condescendências que as criaditas da Alta, as nossas bem-amadas, tinham com os veteranos dos solenes decretos macarrónicos.
A «Cabra» balia por cima da janela do meu quarto; o «menu» do almoço, no Bolha Baixa, à esquina do Largo da Feira, era sempre faneca e feijão frade.
Por cima disto tudo, com dez réis de luar e a capa rota - a guitarra do Paredes e a voz do António Menano.
És linda, mas fôras feia,
Ainda assim eu te queria!...
Quem fosse a «linda» que, «virando» feia, não alteraria a resultado... não sei. Nem se deve falar em coisas tristes!
Proponho simplesmente que vocês ofereçam o «fac-simile» da Cabra, que levam a bordo, para sino de rancho de proa do luqre SANTA MARIA, - não vá o diabo armá-la em São Paulo e virar o bico ao prego de oiro da quadra do António Menano:
És feia, mas fôras linda,
Ainda assim eu te queria!...
Seria estragar, ao IV século, a obra dos santos estudantes que se chamaram Nóbreqa e Anchieta e trouxeram a cruz do Coléqio do Largo da Feira ao campo de Piratininga.
(A) Bordo do SANTA MARIA
16-8-1954
VITORINO NEMÉSIO
in Rua Larga n.º 2 de 01.07.1957, pág. 6


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