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485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Da escritora Graziela Veiga


                                               
MEMÓRIAS DO SISMO DE 1980, VIVIDO NA PRIMEIRA PESSOA! (eu)   

Naquele dia, 1 de Janeiro de 1980, amanhecera  um dia calmo, sem grandes sobressaltos, pois a passagem de ano tinha decorrido com normalidade em nossa casa, como prática do costume daquela época. 
Eu e o meu pai andávamos constipados. O meu pai encontrava-se de cama há mais de uma semana, com febre. 
Na manhã desse dia, levantei-me cedo e fui com a minha mãe à Celebração da Missa às sete horas. Logo que chegamos a casa, a minha mãe sugeriu a meu pai que se levantasse e tomasse banho, pois já se encontrava com melhoras, e também para evitar estar sempre na cama, por não ser benéfico. E assim foi. 
Eu, que me encontrava também constipada e com uma pequena crise de asma, voltei a deitar-me depois do almoço. 
Era cerca das quinze horas, levantei-me. Lembro-me que lavei o rosto e sentei-me em frente a um psiché a pentear-me. Já passava das quinze e trinta, quando de repente, noto o espelho a tremer. Como já tinha passado por sismos, embora de pequena magnitude, deixei-me ficar, pensando que iria passar. Mas não. Continuava mais e mais... 
Aflita e desorientada, corri pelo corredor interior à casa, em direcção à cozinha, onde eu sabia encontrar-se o meu pai. Lembro-me que tive muita dificuldade no andar, pois o chão mexia e revirava-se, e além disso, a casa ruía toda à volta. Lá consegui chegar à cozinha e abracei o meu pai, onde permanecemos juntos até ao fim daquela destruição. Recordo que o meu pai me disse que era o fim, pois dali não escaparíamos. Por milagre, olhámos à volta e já tinha parado. E por incrível que pareça, eu e meu pai ficáramos intactos, no meio da cozinha, abraçados e a vermos o exterior, pois toda a casa estava em ruínas, excepto o círculo em que nós estávamos. Acredito ter sido um milagre. E outros aconteceram...
Passados uns minutos, lembrei-me da minha mãe que tinha ido ao quintal. Falei a meu pai nela, ao que ele me respondeu que da forma que as coisas estavam, certamente estaria morta, uma vez que as duas casas que tínhamos e atafona, tinham ficado caídas. 
Havia um denso fumo que brotava da terra. Uma espécie de ruído indescritível. Gritos, lamentos. Por momentos, fez-se silêncio. As pessoas estavam atónitas. 
Ao fim de alguns minutos, saí por cima dos escombros, com o meu pai e vimos a minha mãe cercada de pedra numa espécie de círculo, também ela intacta, com tudo caído à sua volta. Impressionante! 
Visto que nós estávamos bem, restava saber da família, ou seja, dos meus outros cinco irmãos, dispersos. E em pouco tempo, vieram ter ao sítio onde moravam, e a minha mãe foi recebendo um por um, dando graças a Deus, pois estávamos todos salvos. Essa era a sua maior preocupação. Os bens materiais, naquele momento, deixaram de ter qualquer importância. 
Começámos a olhar em redor, e tudo era destruição. Não havia casas no ar. Estavam todas danificadas. 
Chegou a noite, mais parecia um filme de terror. 
Como o meu pai fazia caixões para os mortos, vieram pedir alguns caixões, não sei precisar quantos. Apenas sei, que dado o número, alguns tiveram que ir por forrar de preto, dado que não havia condições e nem se pensava nisso. A preocupação era dar um caixão aos familiares falecidos e fazer um funeral com dignidade. 
Recordo que as Doze Ribeiras, freguesia onde morava, foi a mais danificada, pois o sismo foi naquela freguesia de maior intensidade tendo alcançado em locais pontuais, o grau X da Escala de Mercalli Modificada (MM) 
A atitude mais relevante era de pânico. As pessoas estavam desorientadas, desoladas, sem saberem o que fazer. 
Chegou a noite e ninguém tinha coragem de entrar no resto que sobejava das casas, nem que fosse para salvar algum bem de valor. Perdera-se toda a coragem, até os mais afoitos. 
Então, um vizinho que tinha feito obras recentemente na sua casa, teve a sorte dela se manter de pé, apesar da algumas derrocadas mas em pontos não estratégicos, de forma que dava para pernoitar. Assim, abriu as postas da sua casa e albergou 21 pessoas, 5 famílias vizinhas. Sei que não consegui fechar-me em casa, mesmo com as portas abertas, tal era o pavor. 
Ficou instalado o pânico, de tal forma que as famílias evitavam dispersar-se, a fim de não se repetir outro sismo que piorasse ainda mais a situação. 
Dormi no carro dos meus tios durante as primeiras noites, passando mais tarde, a dormir sentada num sofá daquela casa que nos abrigou, talvez durante um mês. 
Aos poucos foram surgindo as ajudas. Bens alimentares, sobretudo enlatados, distribuição de colchões militares, cobertores e afins. 
Na casa onde nós ficamos, toda a sala de jantar e de estar, eram camas espalhadas pelo chão. As pessoas iam-se juntando às respectivas famílias, de forma que ficassem o mais juntos possível. 
Na referida casa, habitava uma senhora viúva com um filho casado há pouco anos. O casal fez a gentileza de vir morar para São Bartolomeu, casa dos pais da esposa, pois não tinha caído e assim deixou as famílias que lá estavam mais à vontade com a mãe. 
Na primeira semana, apesar de toda a dor, dava impressão que estávamos no Paraíso. Mas foi sol de pouca dura, pois nos dias que se seguiram já nada estava bem. 
Lembro-me a dificuldade que foi para tomar banho. A primeira vez que o fiz, foi numa barraca montada no nosso serrado que ficava no quintal das casas caídas. Foi com dificuldade que o fiz, pois o vento era tanto e a chuva que impediam que a barraca se mantivesse intacta, uma vez que as estacas estavam sempre a saírem da terra, dada a flacidez desta, devido à chuva que tinha caído. Foram dias tristes, de muita mágoa, desilusão, desorientação, sem perspectivas de futuro. 
Escusado será dizer que não tivemos qualquer apoio psicológico, que tanta falta nos fez. 
Assim fomos passando os dias, até que por questões óbvias, as pessoas ansiavam um lugar de descanso nos seus prédios. E foi assim que surgiu a ideia de construir barracas de madeira. Se assim se pensou, foi assim que aconteceu. Muniram-se de algum carpinteiro, e do engenho de outros e aos poucos foram surgindo as barracas de madeira, com cobertura isolada de forma a evitar infiltrações. Quando passamos a viver nas barracas, sentimos que o pior já tinha passado, apesar de todas as réplicas sísmicas que se faziam sentir e que nos levavam ao alvoroço, novamente. 
A partir daquele fatídico dia, a vida nunca mais foi a mesma para ninguém. Uns ficaram desauridos, inconformados com a perda dos seus ente-queridos, outros com a perda dos seus haveres, uma vez que as coisas foram-se degradando às tempestades que se seguiram. Foi um perder a esperança, um descrédito total num futuro qualquer. Avizinhou-se um verdadeiro desaire. 
Seguiram-se vários quadros de tristeza. A partida dos meus irmãos mais velhos para cumprir o Serviço Militar em São Miguel, Arrifes. Um partiu nesse ano de 80 e o outro a seguir. Além dessa falta para a reconstrução iminente, o meu pai ficou com uma depressão, estado gravíssimo. Foi tratado por um neurologista. Como se costuma dizer, uma desgraça nunca vem só. Na altura, a minha mãe deixava na farmácia, a módica quantia de doze mil escudos. Muito dinheiro, tendo em conta o ano em que decorreu. Mas valeu a pena, ao fim de um ano, o meu pai estava bom e manteve-se até hoje, com a bonita idade de 92, quase 93 anos. 
Em suma, foi o viver de uma situação horrível, que não se deseja nem ao pior dos inimigos. 
No entanto, houve pessoas mais astutas e outras menos escrupulosas que tiraram partido da situação e de tudo fizeram para ficarem bem na vida, à custa do muito que enviaram para as instituições, mormente a nossa família, que depois ouvia da nossa boca que não tinha chegado nada daquilo que tinham enviado. Veio-se a descobrir que tudo era filtrado pelas várias instituições que passavam, e o que sobejava, era precisamente o que nos tocava. A partir da denúncia às famílias, tudo passou a ser diferente. Recebemos directamente para a nossa residência, a fim de se evitar estas aldrabices. 
No meio de tanta desgraça, houve quem se melhorou e outras pessoas jamais voltaram à sua vida normal. 
Sinto pesar de não ter na altura mais idade, dado que não gostei da reconstrução como ela foi feita. Tínhamos uma casa com história, cerca de 300 anos, aliás muito apreciada por um determinado Engenheiro que ficou amigo lá de casa, sobretudo com a minha mãe, que tomou as rédeas da reconstrução. 
Perdeu-se muito valor patrimonial, devido à reconstrução das novas casas, fugindo à regra, ou seja, a maioria delas ficou adulterada, o que pessoalmente, não gosto, pois gostaria de ver as Doze Ribeiras erguida com as construções antigas, com mais qualidade, evidentemente, mais funcionais e com casas de banho, o melhor que o sismo trouxe. As casas de banho e a água canalizada, o que já na altura era criticado pela falta delas. Infelizmente, foi preciso tanta dor, tanta desolação para que se modernizasse alguma coisa, e oferecesse melhores condições de vida àquela população, que de certa forma, estava no esquecimento. 
Passados estes anos, sei de tanta aldrabice, tanto aproveitamento de alguns em prol de benefício próprio. Mas como aquele ditado que diz, tudo o que é roubado não luz, assim tem acontecido, pelo que se vê. 
Passados que são 39 anos, tenho presente toda esta desgraça. Sei que a vida tomou outro rumo, pois as pessoas que passam por estas catástrofes sofrem alterações profundas e irreversíveis. 
Apesar da pouca idade de então, comecei a dar outro sentido à vida. Verifiquei que tudo é efémero, que os bens materiais não oferecem segurança, pois tanto podemos tê-los, como de repente, começar do zero...quando algo tão aterrador acontece e nos deixa na penúria, sem fim à vista. 
Muito mais havia para dizer, mas fico por aqui. Apenas um pequeno apanhado de tanto e tanto que se passou. Conto a minha versão, vista com 17 anos, no ano que fiz 18. 
Presto homenagem à minha amiga Zita, colega de Escola, que partiu há precisamente 39 anos. Hoje, que sou mãe, posso imaginar a dor que foi para aqueles pais! 
Desejo não ter de passar por mais situações semelhantes, bem como todos vós, pois garanto que foi uma situação de tal forma violenta que nos levou um bocado de nós, na tentativa de apaziguar o que foi HORRÍVEL! 
Apesar de tudo, dou Graças a Deus por me ter deixado a minha família mais uns anos, e lamento aqueles que perderam algum membro da sua, ou até mesmo, a família por completo.
Se eu e o meu pai, não nos tivéssemos levantado da cama, tínhamos falecido, dado que as camas ficaram cheias de pedra de cantaria e destroços. Era impossível sobreviver.  
01-01-2019
Graziela Veiga

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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