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485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

domingo, 3 de março de 2019

Da Califórnia de Luciano Cardoso


MAGIAS DO ENTRUDO

Longe vai o tempo em que, no meio rural da minha festeira Ilha Lilás, o Entrudo entrava-nos em casa quando muito bem lhe apetecia. Viesse quem viesse, fosse à hora que fosse, a mesa estava sempre enfeitada com um cheirinho do melhor que, naqueles dias, fazia as delícias ao pessoal. Uma fatia de torta viana pedia um licorzinho caseiro ou uma aguardente da terra, ao gosto do freguês, e lá vinha uma rima improvisada como calhava no momento em que a boa disposição se encarregava do resto. 
Manuel Veludo sabia disso quando decidiu aparecer-nos à porta naquela fria noite de sábado gordo sem se querer dar a conhecer. De corpo esguio, mas rijo a valer, era o mais velho dos quatro irmãos, também conhecidos por Lagartos, e gabava-se de ser o mais divertido. Tinha graça naquilo que dizia com o seu irrequieto espírito de humor sempre a maquinar partidas que adorava pregar a seu bel-prazer. Morava na Canada da Fonte, donde se deslocava quase todas as manhãs, a pé, pelo atalho do mistério até à adega do irmão, José Lagarto, onde se juntavam, na Canada do Caldeiro, mesmo em frente à nossa morada. Era como se fosse lá de casa e, para mim – nem Lagarto nem Veludo – conhecia-o só pelo Ti Manel da Fonte.
Homem sério à moda antiga, dos d’antes quebrar do que torcer, meu avô, que morava connosco, não engraçava lá muito com brincadeiras meias tolas. Mesmo no Carnaval, não lhe viessem toldar as ideias, sem mais nem menos, com surpresas de mau gosto porque iam-se ver em maus lençóis. Toda a gente, ali à volta, sabia que o Ti Manuel Bicharedo não era sujeito de pôr água a pintos nem de arreganhar os dentes à toa. Refugiava-se num humor seco e um tanto ou quanto supersticioso. Contava estórias do arco da velha, de lobisomens, abantesmas e espíritos ruins que eram duma pessoa se mijar todo de medo. Manuel Veludo conhecia-lhe bem o fraco. Pudera não – era seu sobrinho e viam-se amiúde. “Vou pregar uma boa a meu tio.”
Ao contrário de hoje em dia, o Carnaval de antigamente via muitos mascarados pelas ruas a fazerem das suas. Quem achava que tinha piada, aprendia a perder a vergonha e não precisava de qualquer ensaio. Aquilo saía como calhava à hora que mais convinha. Ora, do que é que se havia d’alembrar o pândego do Ti Manel da Fonte? Enrolou-se num lençol branco naquela noite escura como breu e sem lua nem estrelas no céu. Como não havia ainda qualquer luz elétrica nos caminhos nem ao redor das casas, o seu vulto alvo fazia um efeito endiabrado. Parecia uma das tais “pantesmas” à solta para assustar quem a topasse sorrateira a desafiar o invernoso negrume noturno. Iria o Ti Manuel Bicharedo cair na esparrela? 
Quem não arrisca, não petisca. Cismado em burlar o tio pela calada da noite, toca a bater-lhe à porta, depois da hora da ceia. Meu avô, que tinha vigiado primeiro à janela, não estava para meias medidas e preparou a bengala a jeito, caso fosse precisa. Antes de abrir, palpitou – “quem for, faça o favor de dizer.” De fora para dentro, a voz soou rouca e atrevida, “sou uma alma do outro mundo, morta de fome e cheia de sede. Se não quiserem abrir a bem, a mal vai ser pior. Entro pelo buraco da fechadura.” Manuel Bicharedo não pensou duas vezes. Tomou folego, encheu-se de coragem e, mal abriu a porta, atirou-se ao vulto branco disposto a fazer-lhe a vida negra. Quando notou que era uma alminha de carne e osso, apertou-lhe as aduelas de maneira que o sobrinho não teve outro remédio senão desmascarar-se logo aos gritos, “devagar, meu tio, devagar! Sou eu, o Manuel da Fonte! Não é preciso apertar mais!” Nem foi. O abraço abrandou logo o génio ao Ti Bicharedo, “tiveste mais sorte do que juízo, Manel. Olha que eu podia ter-te pisado bem. Já eras para saber que nunca tive medo de mascarados.” 
Ora, eu confesso que ainda tenho. E vou ser franco. Não são já os disfarces ou as máscaras que me assustam. Amedrontam-me sim as pessoas fingidas. Quem vê caras não vê corações e nada hoje me embrulha tanto o estômago como topar alguém a fazer-se mais do que é. Ou, pior ainda, querer-se passar pelo que não é. Detesto os amigos da onça, mas também percebo que faz parte da natureza humana essa arte plástica da hipocrisia maquilhada por finórias espertezas tais como a mania das grandezas e outras afins. Até mesmo meu avô gracejava que/só das orelhas ninguém gosta de ser grande. Se fosse hoje vivo e pudesse meter o nariz nos usos e abusos das redes sociais, ia ser lindo. Quando se apercebesse que qualquer habilidoso troca tintas, com uma foto bem lapidada num perfil extra polido, pode ludibriar meio mundo... – ... “a mim é que não me enganas, seu pelintra duma treta.”
Essa arte foi-se. Isso de reconhecermos a olhos vistos quem nos quer tramar às cegas, tornou-se um pouco mais difícil. Vivemos na cibernética era do parecer bem e manipular ainda melhor. Dissimular hoje é tão fácil. Cada vez mais se adorna o cultivo da imagem. É ela que vale. E vende. Mesmo que o caráter peque por oco, tudo se ajeita com a pronta achega dum titulozinho colado ao nome. A reputação muda logo de figura. Qualquer alma do diabo, num manhoso golpe de mestre, pode ganhar uma carinha d’anjo. E a gente ri-se. Até aplaude. Fantasiar os contornos da realidade é uma das magias do Carnaval. Alguém leva a mal?
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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