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quarta-feira, 29 de maio de 2019

Da Califórnia de João Bendito - O IMAGINADO E O LEMBRADO


O IMAGINADO E O LEMBRADO

A minha rua é muito pacata.

Por aqui só passam as pessoas que cá vivem e, durante a noite, por regulamento da Associação de Moradores, não é permitido estacionar senão nos “driveways” das residências. Fica a faixa de rodagem totalmente livre de carros até de madrugada e por isso, no dia da recolha de lixo, é fácil detectar algum pormenor mais fora do normal.

Num desses dias, ao sair cedo para o trabalho, notei o caixote do lixo de um vizinho a transbordar com uma enorme girafa de peluche. Claro que tive que sair do carro e tirar uma fotografia à desafortunada girafa que ia acabar os seus dias na lixeira municipal. De certeza que foi companheira de brincadeiras e aventuras do filho do vizinho que, agora já mais crescido, deve ter passado à época dos jogos electrónicos e a girafa passou de moda. Coitada...

Contei o sucedido à minha neta Olívia quando a fui adormecer para a soneca da tarde. Mostrei-lhe a fotografia e, ao ver que ela tinha ficado um pouco triste com a situação da girafa, inventei uma estória com um fim mais feliz. Aliás, por cada pormenor que eu relatava, a Olívia, menina de copiosa imaginação, adicionava outros mais, imaginava cenários fantasiosos, divertidos até. Resumindo, foi uma inquietação para ela adormecer naquela tarde mas, ao fim e ao cabo, “salvámos “ a girafa! O bicho peludo conseguiu saltar fora do caminhão, correu pelos prados das redondezas, encontrou um urso polar (feito do mesmo material) que também tinha tido uma sorte parecida e, com a ajuda de um grupo de saltitantes coelhos, chegaram até à tenda de um circo, foram adotados por um casal de palhaços que os protegeram e onde foram felizes para o resto da suas vidas. 

Lá de vez em quando a Olívia pede-me para recontar a estória da girafa. Contudo, eu já descobri que ela não está muito interessada na minha narrativa, ela quer é tomar a iniciativa de inventar mais situações diferentes, arranja mais e novos amigos para a girafa, que até já frequenta uma escola própria para peluches e vai a classes de ballet... A imaginação da Olívia parece não ter limites, não sei onde e como ela inventa tanta coisa. O que sei é que as crianças da idade dela (quatro anos e mais qualquer coisa) são assim, são capazes de criar cenários mirabolantes e cheios de personagens fantásticas. Oxalá, daqui a alguns anos, a Olívia se recorde disto tudo e possa escrever a estória da girafa que fugiu do carro do lixo.

Vi descrita, no livro que acabei de ler esta semana, uma situação um tanto ou quanto parecida, só com um ponto inverso. Uma avó, a laureada escritora peruana Isabel Allende, relata, no seu livro My Invented Country, um episódio passado com a neta Andrea. A menina, numa redação feita para a escola, dizia que admirava a imaginação da avó. Quando esta questionou o que é que ela queria dizer com aquilo, Andrea simplesmente respondeu: “ Sim, avó, é porque tu lembras-te de coisas que nunca aconteceram”. E, com esta conversa, a senhora escritora aproveitou para dissertar sobre as suas ideias em relação à ténue diferença que, em certos contextos, poderá haver entre o que recordamos e o que imaginamos, chegando a escritora à conclusão que essa linha poderá ser, eventualmente, indistinta. Ou mesmo o paradoxo ou incoerência que poderá acontecer quando duas pessoas assistem aos mesmos factos e, passados tempos, recordam pormenores completamente diferentes do mesmo acontecimento. Perdurou a memória ou a imaginação? Será que a Olívia, daqui a anos, vai recordar a estória da girafa tal qual eu a contei ou vai continuar a inventar, a imaginardetalhes diferentes? Só vamos saber se ela se resolver a escrever o tal livro que já lhe encomendei. 

Sem, de maneira nenhuma, querer estabelecer a mínima comparação entre a minha escrita e a da famosa escritora peruana, eu também tenho que confessar que me surpreendo a recordar episódios e peripécias que podem não ter acontecido exatamente como eu os relato. Não, isso não acontece nas crónicas que escrevo para os jornais comunitários e partilho no FB, porque nelas procuro ser autêntico e fiel aos factos que relato. Se alguma imprecisão ou discrepância acontece, espero que a entendam como falha involuntária. Mas, como poderão ver os que se aventurarem a folhear e ler o futuro livro “BARRO VERMELHO – ILHA BRANCA”, notarão que me atrevi a tomar algumas liberdades, sem contudo passar as raias da mentira ou da intrujice.

Posso separar o conjunto de estórias que reuni para este livro em dois grupos. No primeiro, revisitei as vivências familiares, os convívios com avós, tios e primos, sem descurar as lembranças de amigos e de situações que vivi e não esqueci; no segundo grupo, embrenhei-me em histórias que ouvi falar, que colhi de relatos de familiares e de amigos ou das quais tomei conhecimento através de leituras em publicações diversas. E foi nesses casos que penetrei em águas onde nunca tinha navegado ou onde os factos que eu conhecia não eram os suficientes para uma descrição verídica do que se passou na realidade. Misturei o verdadeiro e factual com o que imaginei poderia ter acontecido. Romanceei as situações, divaguei por lugares e épocas que não fizeram parte da minha existência, criei personagens e até usei outros amigos como declamadores, como os responsáveis por contarem as estórias que eu queria trazer a público. Assim, o Sr. Oriolando Silva, investigador da História da Graciosa, “encarregou-se” de me ensinar, a mim e a um grupo de amigos, os factos relacionados com a Revolução do “Bicharedo”, o curandeiro que, em vez de curar, trouxe muitos dissabores a alguns graciosenses; o padre José (Simões Borges) “narrou”, em termos simples e ao mesmo tempo didáticos, os meandros que envolveram o aparecimento da primeira filarmónica na Graciosa, em 1818; “Pedi” ao meu avó Guilherme “Rato” que nos descrevesse os incidentes que vitimaram dois pilotos polacos, quando o avião em que seguiam a caminho da América se despenhou no lugar da Brasileira. Contudo, foi a minha querida avó Delminda que me tocou mais no coração, quando, descaradamente, a “obriguei” a recordar os escuros pormenores da vida da mãe dela, a mestiça Madalena Júlia, cuja ascendência é, ainda hoje, um mistério.

Portanto, quando ou se lerem os textos compilados no novo livro, espero que diferenciem a tal linha de que falava a Isabel Allende, a ténue diferença entre o imaginado e o lembrado, entre o que “criei” e o que recordei. E, se daqui a uns anos, alguns de vocês ainda cá estiverem para lerem o livro que a Olívia vai escrever, façam o mesmo, não se esqueçam que, aos quatro anos de idade, ela já tinha uma imaginação que, porventura poderá ter ofuscado a sua jovem memória.

Porque, como disse Nemésio e eu cito à entrada do livro, “É na memória que outra vida hiberna”.

Lincoln, Cal. Maio, 17, 2019
João Bendito
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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