A condescendência, com o que tinha de indiferença e de mentira, era a grande inimiga da intimidade. A verdade podia fazer muita mossa. Estava longe de ser um valor absoluto. Mas, se ruía a intimidade, restava o quê? Sustinha-se de pé o quê? Sustinha-nos de pé o quê?
Animais
Era um homem com um problema momentâneo de auto-estima e que tinha um cão que tratava como a uma pessoa. O mundo estava cheio de homens assim, pelo que não seria mais um a perturbar o equilíbrio cósmico.
Nunca a gratidão se isentou da sua parte de remorso.
Casa
Talvez não se pudesse amar uma casa como a uma pessoa. Mas podia-se, mesmo assim, amar através de uma casa as pessoas com quem se fora feliz nela.
Mentira
As mentiras que as pessoas contavam a si próprias pareciam-lhe o mais delicado e fundamental equilíbrio em que assentava a ordem do mundo.
Amor
Nunca deixes partir aqueles que amas.
Animais
Parecia saber quando protegê-lo e quando educá-lo, e em momentos de fraqueza chegava a ponderar se, havendo podido ser dono de um cão antes de ser pai de uma criança, não teria afinal conseguido corresponder a pelo menos uma parte daquilo que se espera de um homem.
Crueldade
Habituara-se a olhar para si mesmo como um homem instruído o suficiente para condescender com a crueldade de que a ignorância sempre se revestia.
Maldade
Qualquer pessoa, velha ou nova. Não se iluda quanto ao grau de maldade que pode reunir-se numa criança de nove anos.
As horas
Ao fim de três anos e meio, adaptei-me a quase tudo. Mas não aos horários - nunca aos horários.Naturalmente, já não se janta ao meio-dia nem se ceia às seis da tarde, aqui como no resto do país. Mas o almoço ainda é impreterivelmente às 12.00. O período da tarde começa às 13.00, às 17.30 é noitinha e só numa noite de loucura boémia, assim numa sexta-feira de Primavera, o jantar começa depois das 19.00 (talvez às 19.30).
19.30 é quase hora de almoço para nós. E até acordamos cedo. De maneira que, quando alguém telefona na quinta-feira para jantarmos juntos na sexta, eu começo por procurar margem negocial:
- Nove horas está bem para vós?
Do outro lado, o interlocutor fica logo em tremores, aflito com os diabetes. Só então desfaço o equívoco:
- Estou no gozo. Oito e meia aparecemos!
E mesmo assim é apertado para nós, porque ambos continuamos a trabalhar para Lisboa e nem sempre podemos fazê-lo a outro ritmo que não o de Lisboa.
No Verão passado, chegou a ser divertido. Uma tia querida convidou a família toda para um jantar a meio da semana, já não me lembro a que pretexto. Disse:
- Pelas sete e tal/oito, pode ser?
Fiquei grato pelo intervalo. Se fosse em Lisboa, aparecia às oito e meia. Face às circunstâncias, ordenei a mim próprio: às oito não falhas!
Eram sete e dez (não exagero: sete e dez) quando ligou a minha mãe.
- Então, não vens?
Já estava sentada à mesa, à espera. Eu arregalei os olhos:
- Mas a tia disse-me sete e tal/oito...
E ela:
- Então? Já são sete e tal.
Nesse dia, tomei uma decisão: aceitar o papel de maluquinho. Na verdade, aqui há vida. Distingue-nos sobretudo uma coisa: para muitos, o trabalho é para fazer e tirar do caminho, de modo a começar-se a viver; para mim, não há vida tão exultante e feliz como o trabalho ele próprio.
Nenhum está mais certo do que o outro.
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