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sexta-feira, 3 de maio de 2019

Do jornalista Souto Gonçalves - 11 – DEI COMIGO A PENSAR…


11 – DEI COMIGO A PENSAR…

… nas voltas que dei à Caldeira

O meu saudoso amigo Luís Eduardo Sousa Medeiros («Croquete») comprou uma tenda de campismo, verde. Estávamos já perto dos anos 1980. Começou o frenesim para experimentá-la. Arquitetámos um plano e decidiu-se acampar na Quinta de São Lourenço.

Foi a minha primeira experiência de campismo, com o grupo de amigos mais chegados da mesma turma do Liceu.

À boleia dos pais de uns e outros seguimos para a Quinta numa tarde de sol, em pleno verão. Foi um dia triste para mim pois meu pai não me deixou ficar de noite!

Em contrapartida recordo o relato dessa madrugada de folguedo: estavam todos (quatro, parece-me) dentro da tenda, sem sono. Para quebrar a monotonia, alguém se lembrou (e da cabeça de um adolescente, liberto da disciplina doméstica que naquele tempo imperava mais do que hoje, coisa boa não seria de esperar): vamos fazer um concurso de peidos!

Começou o campeonato e cada qual fez o que pôde. Faltava o Lemos, que se mantinha silencioso.

Então, como é que é?

Repentista como sempre, responde o José Lemos: estou a fazer uma seleção!

A partir desta altura os acampamentos sucederam-se e consegui fazê-los a tempo inteiro, pois meu pai cedeu. Mandei vir uma mochila do André Jamet de Ponta Delgada (outro dia passei pela loja que a empresa tem no Parque Atlântico), encomendada por carta, pois a Internet estava por inventar.

Antes disso consegui fazer uma mochila com sacas de sarapilheira e cabos de vassoura, que ainda serviu para levar as coisas para acampar no São João da Caldeira.

Acampámos pela primeira vez em São João, numa mata próxima do Largo Jaime Melo e fizemo-lo depois vários anos seguidos no prédio do Senhor Augusto Sequeira.

A primeira vez ficou-me marcada na memória. Alguns do nosso grupo conseguiram tendas do FAOJ (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis), gerido no Faial pela Casa de Cultura da Horta, que tinha à frente o Professor José Dutra Vieira. Eram tendas ótimas, mas não havia para todos.

Eu e o Lemos resolvemos fazer uma tenda, pois dinheiro lá em casa para estas «africanadas» só por um canudo.

Qual foi a ideia?

Falámos com o Senhor João Porto com antecedência e ele começou a guardar-nos sacas de 50 kg de açucar da sua mercearia. O maior trabalho foi lavar as sacas, que vinham todas meladas.

Convenci minha avó a emprestar-nos a máquina de costura e umas quantas agulhas depois, a tenda estava pronta (se me tivesse lembrado a tempo publicava aqui uma fotografia a comprová-lo). Apenas ficou a faltar a porta, que fechava com botões que encontrámos na caixa de botões que outra vez minha avó, complacente, nos deu.

Fomos para cima e toca a assentar arraiais. Os que tinham tendas do FAOJ despacharam-se, enquanto eu e o Lemos ficámos a coser a porta e a tentar segurar da melhor maneira os tubos de água usados que faziam a vez dos prumos da tenda. Resultado: quando íamos para a festa, vinham os outros já de regresso!

Na Praia do Almoxarife, quando o parque de campismo ainda talvez nem andasse na cabeça de quem o idealizou, acampámos vários anos.

Combinámos fazer sentinela durante a noite. Sabíamos que não havia perigo nenhum e mesmo que houvesse a competência da sentinela era insuficiente para se opor a fosse o que fosse. De qualquer maneira o clima de aventura de que nos imbuíamos nestes acampamentos era reforçado com a ideia de imaginários malfeitores a rondar.

Depressa os meus colegas concluíram que eu era a sentinela ideal para fazer o primeiro turno. É que pegava sempre no sono e assim já não despertava ninguém para o turno seguinte. Dormíamos todos descansados.

As noites de julho e agosto eram deliciosas. Lembro-me bem de, numa das primeiras sentinelas que fiz, adormecer num saco-cama em cima da pastagem e de acordar de manhã com uma vaca curiosa à minha beira.

Anos mais tarde, sucedeu o mesmo na tropa: voluntariei-me numa Semana de Campo para o primeiro turno e acabei adormecendo junto a um muro de pedra numa pastagem nos matos da Terceira. Comecei a ouvir sinos ao longe e quando dei por mim estava um rebanho a ser ordenhado a meia dúzia de metros.

Também houve algum dramatismo nestas peripécias.

Na Praia do Almoxarife o «Croquete» começou a dizer que tinha dores de barriga. O Luís Eduardo era um brincalhão e não passou pela cabeça de ninguém que ele estivesse a sério. Mas tanto se queixou que fomos ao Mini-Mar telefonar para o Senhor Rodrigo das Finanças (o pai). Chegou no seu Fiat bege, de formas retilíneas e levou o Luís. No dia seguinte soubemos que fora operado de urgência durante a noite com uma apendicite aguda.

Num destes anos, em que ainda não se falava de preservação do ambiente e em que não se corria em trails, começámos a pensar em ir à borda da Caldeira.

Num dia feriado (que sinceramente já não me lembro qual, mas pode ter sido a 10 de junho) partimos da cidade a pé, num grupo alargado às raparigas, que não iam acampar.

Foi mesmo antes do sol nascer. Almoçámos na borda da Caldeira e descemos ao fundo. Fui deixando bocados de papel higiénico pendurados nos arbustos por onde passávamos para o caso de se forrar de nevoeiro não ficarmos desorientados. Após o regresso à borda seguimos pelo perímetro da cratera, que completámos. À noitinha, extenuados, despedimo-nos já com as luzes da cidade acesas. Mais de 12 horas de marcha e alegria!

Lembrei-me disto anteontem ao fazer de novo o trilho da borda da Caldeira.

E pensei que este binómio Caldeira–Pico tem um potencial turístico de que talvez ainda não demos conta verdadeiramente.

Duas ilhas tão próximas oferecem dois monumentos da natureza tão diferentes e ao mesmo tempo tão parecidos na espetacularidade que apresentam aos nossos olhos.

Até a forma geométrica de cada um se encaixa mutuamente. Enquanto no Pico se contempla a explosão da força que o formou, na Caldeira parece que somos chamados ao interior da terra que nos dá vida. Numa manhã sem vento ouvi claramente as rãs a coaxar no fundo.

A Caldeira, porém – permita-se-me esta graça – tem uma vantagem sobre o Pico: é que nos 8 km à sua volta podemos sempre desfrutar da Montanha em frente, um panorama único no mundo.

Julgo que, em termos de promoção do Faial e do Pico, este conjunto cratera–montanha daria uma boa ideia para ser trabalhada por um especialista em marketing.

Um reparo: o trilho da Caldeira está bem conservado e é muito acessível, apenas com uma ou outra parte do troço que exige um pequeno acréscimo de disponibilidade física. Nota-se, porém, a falta de civismo de alguns utilizadores, que deixam lenços de papel pelo chão ou até nem cuidado têm para procurar algum recato para satisfazer necessidades fisiológicas imperiosas – com o perdão da expressão, cagam no caminho!

O Parque Natural do Faial poderia ter mais atenção relativamente a uma ou outra vedação que protege zonas perigosas, que têm tábuas caídas e também, se calhar, reforçar o número de postes que indicam o percurso, para desfazer dúvidas. Penso até que nem todos os postes estão de pé.

Souto Gonçalves

Publicado também no jornal Incentivo, na sexta-feira, 3 de maio de 2019
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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