JORNALISMO EM DESTAQUE

485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Do jornalista Souto Gonçalves - 14 – DEI COMIGO A PENSAR…


14 – DEI COMIGO A PENSAR…

… num número de circo, mas ainda não no circo

Acho que criei alguma expetativa nos leitores quando falei num circo de Castelo Branco, sem ter explicado que circo foi.

Houve mesmo um circo na «minha» (não de nascimento, mas de coração) freguesia, por mais improvável que isso possa parecer.

Foi no princípio da década de 70 do século passado. Salvas as distâncias devidas e com ironia q.b. até sou capaz de dizer que, em tal época, aconteceram duas coisas extraordinárias em Castelo Branco: a inauguração do aeroporto e o Circo Faialense.

Ainda sou do tempo em que não havia aeroporto, inaugurado a 24 de agosto de 1971. Tudo era diferente!

Os leitores que me têm lido já sabem que o melhor da minha vida foi passado nos meses de verão em Castelo Branco.

No pico da canícula, entre as 4 e as 5 da tarde, a rapaziada da minha idade juntava-se à porta da loja do Senhor Manuel Gomes de Faria (Manuel da Atafona), vizinho dos meus avós.

Ainda antes de ir tirar o leite às vacas o Senhor Manel procurava atrás de casa as melancias maduras. Batia com as costas do «pai-de-todos» (dedo mindinho, seu vizinho, pai-de-todos, fura-bolos e mata-piolhos) nas melancias que lhe pareciam mais maduras encostando o ouvido e trazia-as. Frescas como a manhã, ficavam na loja à sombra.

Então, a meio da tarde, depois de «passar pelas brasas» a seguir ao almoço, vinha até à loja. A gente já estava cheios de sede! O Senhor Manuel puxava a navalha e toca a partir talhadas. O problema era no fim: todos queriam o coração!

Naquelas tardes escaldantes nada era capaz de saber melhor do que umas talhadas de melancia e um «padaço» tenro do coração… qual sorvete ou refresco?!

Às vezes em pleno verão caíam pancadas de água como um dilúvio.

O Senhor Manuel aproveitava para serrar canas de milho que serviam de cama às vacas: a «Trigueira» e a «Criada», mais o «Chico Bondoso» -- o burro em que andei horas esquecidas --, que ficavam na loja, por baixo da habitação.

Também havia dias em que minha mãe combinava ir ao banho com algumas vizinhas.

Enquanto isto, a pista começou a receber aviões -- o primeiro foi no dia 1 de abril, salvo erro no ano da inauguração do aeroporto, um avião cinzento e cor de laranja da Direção-Geral da Aeronáutica Civil, parecido com os Dakota que a SATA teve.

Minha mãe gostava de ir à Poça Redonda, tal como no seu tempo de juventude, mesmo na foz da Ribeira Pequena, mas agora dar a volta pela ponta da pista, a pé, era um martírio numa tarde de estio. Então, sub-repticiamente, mesmo nas barbas dos controladores aéreos, atravessávamos a pista, pois a Poça Redonda ficava quase em frente à nossa casa. Eu tinha medo que não viesse algum avião!

Isto faz-me lembrar mais duas histórias, que, contadas hoje, dir-me-ão que estou a mentir.

Estava um Dakota da SATA no fim da pista (do lado da cidade) preparando-se para levantar. Os Dakotas tinham duas rodas à frente e uma, pequenina, atrás, ao contrário do que hoje se vê nos aviões. Paravam na cabeceira da pista e aceleravam os motores duas vezes. À terceira embalavam para descolar.

Como naquela altura ver um avião levantar era uma novidade, as pessoas aproximavam-se da pista para observar mais de perto, pois não havia vedação. Tão perto que o controlador Ávila de Melo achou de mais e resolveu mandá-las afastar-se.

A torre de controle antiga era no edifício que ainda hoje existe, à beira do caminho, com uma torre quadrada branca, construída para o efeito, mesmo ao pé do «muro do aeroporto», na estrada regional. O senhor Ávila de Melo bem gritava do varandim da torre, esbracejando, mas os mirones não se davam conta. Eu assisti a isto. Chateado, pegou numa pistola de lançamento de «very-lights» e disparou para o ar para chamar a atenção. Resultado: ateou fogo num bardo de canas e os bombeiros do aeroporto tiveram que intervir!

Uns anos mais tarde – e aqui vai o relato de outro episódio impensável nos dias de hoje – um emigrante albicastrense da Califórnia (Carlos Goulart) organizou uma excursão. Alguns dos excursionistas regressavam à sua terra pela primeira vez depois de terem emigrado por causa do Vulcão. Vinham num Avro da SATA, aquele airoso avião com uma risca azul ao longo da fuselagem e o «rabo» vermelho e branco às faixas, que fazia nessa ocasião a sua viagem inaugural para o Faial.

Saudade e emoções, avião novo, América, aeroporto recente, uma amálgama de sentimentos.

O Avro parecia uma urbana: mal a porta se abriu e começaram a surgir os primeiros passageiros, os familiares e amigos, a que se juntaram os curiosos, foram a correr abraçá-los ali mesmo debaixo das asas!

O aeroporto, para os albicastrenses, tornou-se o centro do mundo. Deu empregos durante a sua construção e depois de estar pronto e alguns deles ainda se mantêm. Deu a Castelo Branco a honra de ser a porta de entrada do Faial. Teve uma influência direta na comunidade onde foi implantado. Tomou o lugar do chão mais fértil do Faial. Alguns residentes, com o dinheiro das expropriações de casas e terrenos, compraram nova habitação na cidade. Um certo sentimento de perda, no entanto, persistiu. Ainda se ouve falar das terras que o aeroporto «levou»!

Lembro-me que nas brincadeiras de criança, eu e os meus amigos, fazíamos com canas de foliões canoas para ir à baleia, uma influência clara de um período épico da nossa história. Curiosamente, começámos depois a construir, com as mesmas canas, aviões de brincar, também influenciados pela nova realidade que passou a existir com a construção da pista. Pintávamos de amarelo raquetes de pingue-pongue e imitávamos os funcionários do aeroporto que orientavam as aeronaves na placa de estacionamento.

O Aeroporto da Horta ficou, entretanto, associado a dois dos maiores ajuntamentos que ocorreram no Faial, senão em toda a sua história, pelo menos na minha geração: a respetiva inauguração e a chegada da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima, em 1989. Contribuí para ambos com a minha presença.

As melhores férias grandes da minha vida, já o disse e repeti, eram em Castelo Branco. E a partir de determinada altura a dinâmica da construção do aeroporto e o seu funcionamento passou a ser uma constante aos meus olhos.

A casa dos meus avós maternos – onde hoje vivo – ficava em frente à torre de controle (antiga). Os funcionários eram todos nossos conhecidos: Leitão, Viegas, já falei de Ávila de Melo, Machado Dias, pai do meu amigo Jorge Afonso, Esteves, conhecido por «cabecinha de alfinete» e que numa passagem por Ponta Delgada com minha mãe e meu avô mais tarde fomos encontrar como taxista e, finalmente, Arménio.

O senhor Arménio, de vez em quando, saltava para uma mota MZ vermelha e preta e fazia, com ela a andar, um número de equilibrismo: um pé sobre o assento e uma perna esticada para trás. Era o êxtase da miudagem!

E pronto, terminei com um número circense, mas não é desta ainda que vou falar do tal circo. Até para a semana se Deus quiser!

Souto Gonçalves

Publicado também no jornal Incentivo, na sexta-feira, 24 de maio de 2019
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

Sem comentários:

Enviar um comentário