8 – Dei comigo a pensar…
… na dança de Carnaval do Professor Rodrigues
Recordei aqui, na semana passada, que, antes de ir para a 1.ª classe, frequentei a «explicação» da D. Balbina, por cima da Pastelaria Ideal. Agora lembrei-me do filho dela, que se chamava Ramiro e salvo erro trabalhava na moagem, em frente ao Castelo de Santa Cruz.
Era uma personagem curiosa, de poucas falas, passo miudinho e muito lento. A idade foi-lhe rarefazendo o couro cabeludo e sendo generosa com a barriga, ao ponto de destacar – e me impressionar – a semelhança, em volume e forma, da proeminência abdominal com a da cabeça.
A silhueta do Senhor Ramiro, a maneira como se deslocava, do tipo «faz que anda mas não anda», tornavam o filho da D. Balbina uma daquelas figuras típicas que qualquer pequena localidade tem para atestar a sua singularidade.
Mas na Horta havia mais… o Gilberto ceguinho, que «via» a cidade através da sua bengala e que talvez foi o faialense que teve o maior número de braços metidos no seu para o ajudarem a atravessar o caminho, ao som do transístor que trazia sempre na mão; o «Hortense», que sofreu a inclemência de uma sociedade segregadora e desrespeitadora de direitos humanos; uma senhora magrinha, que a idade foi curvando no seu vagar (dizia-se que assistira à morte do marido num avião que se despenhou na baía da Horta), entre outros de que não me recordo, ou não são do meu tempo e sem esquecer o persistente melomaníaco José «Fidalgo».
Depois da D. Balbina fui para a Escola da Rua Advogado Graça onde andei até ao exame da 4.ª classe. Vivia a escassos 100 metros, era só subir a rua e, ao virar à direita para entrar no portão, voltava-me e minha mãe acenava do canto do terraço da casa de meu avô.
Já sabem como é que eu era nesse tempo – e ainda sou… --, um menino mimado, felizmente não no sentido de me fazerem todas as vontades, mas, julgo eu, por causa daquela operação à apendicite, com menos de quatro anos, que me afetou muito, psicologicamente e que já contei noutro artigo.
Por isso, nas primeiras vezes que fui para a escola minha mãe teve que ir comigo. Depois, começou a ficar no terraço, mas a distância entre mim e ela parecia um fosse intransponível...
O Professor Rodrigues (António da Luz Rodrigues, ou Professor «Bicho») deu-me aulas quatro anos, só com uma interrupção, por doença, em que foi substituído pela filha mais velha do Senhor Teófilo. Com ela bati o meu recorde: «Muito Bom» num ditado.
Do Professor Rodrigues apanhei umas reguadas – uma, ou duas no máximo -- com a «velha» (um «padaço» de pau feito na carpintaria do Senhor António Inácio «Queijeiro», ali perto). Aquilo ardia c’mó Diabo!
A D. Berta era a contínua, principal. A outra era a D. Arlete.
A D. Berta, imponente e culta, com uma voz estridente aguentava-se bem. Não comigo, um cagarolas. Agora com a malta da Ribeira, do Bairro do Hospital, do Bairro da Boavista e da Conceição era preciso ter pulso!
Naquela altura eles pareciam grandes, falavam alto, é que escolhiam as equipas para jogar à bola e contavam anedotas picantes, que me despertavam curiosidade, logo anulada pelo arrependimento que era necessário sentir conforme aprendíamos na catequese.
Meti-me com a D. Arlete a jogar «belamento» na Quaresma. Ela convenceu-me a apostar 2,5 quilos de amêndoas, pois meu pai vendia amêndoas na mercearia... Quando cheguei a casa nesse dia levei um puxão de orelhas, mas ficou a garantia que se perdesse teria os 2,5 quilos de amêndoas para pagar a aposta.
A D. Arlete escondia-se de manhã, antes de ir para a escola, atrás da porta da garagem de meu avô, nas Escadinhas e, mal eu saía, «belamento»! Perdi e paguei.
O Professor Rodrigues tinha um método pedagógico muito interessante. A meio da manhã levantávamo-nos todos das carteiras e formávamos a «rodinha». Lado a lado ocupávamos a sala de aula de uma ponta à outra e cada qual dizia o seu número pela ordem em que se encontrava na «rodinha».
O Professor Rodrigues começava a fazer perguntas a partir do número 1 e, perante a ausência de resposta ou erro, prosseguia pela ordem crescente até alguém acertar e quem acertasse subia tantos lugares quantos os que tinham falhado a resposta.
Claro que nos primeiros números andavam sempre os mesmos: o Paulo Moura, o José Mário, o Guido, o Maia… hoje profissionais de grande gabarito.
O Professor Rodrigues, cujo contributo para a cultura musical faialense deveria ser investigado com detalhe – sei que, após o sismo de 1998, foram descobertos na loja da sua casa, à Rua Formosa, nos Flamengos, manuscritos de grande valor --, resolveu, quando já estávamos na 4.ª classe (1973), fazer uma dança de Carnaval na Escola.
Mandou-nos arranjar paus de vassouras velhas e formou essa dança, cuja particularidade era o toque dos paus uns nos outros. Ensaiávamos da parte da tarde e aquilo consolava: cadernos arrumados na pasta e toca a folgar. Só um senão: tudo rapazes! A primeira rapariga que se sentou ao pé de mim, ou eu ao pé dela, foi no exame da 4.ª classe, na Escola Coronel Silva Leal, à Praça da República -- a escola das raparigas.
O Professor Rodrigues, com esta dança, dava nota de uma visão avançada em atividades extracurriculares, que hoje são normais, mas naquela altura não.
A dança saiu à rua, já perto do Entrudo, numa tarde de sol e atuou na Praça da República, em frente aos Correios e julgo que no Largo do Infante, num dia de semana e com muito público a assistir.
Cada um escolheu a fantasia que quis. Lembro-me que o Rui Baptista levou uma máscara do Demónio. Eu fui de marinheiro…
… nesse tempo passava as férias grandes em Castelo Branco, na casa onde moro hoje. A família do meu vizinho da porta tinha dois filhos (o mais velho continua a morar na mesma casa). O José Isidro, que eu tratava por «amigo» e acabou por emigrar para a Califórnia, alistou-se como voluntário na Marinha. A primeira vez que o vi fardado deslumbrei-me. Tão deslumbrado fiquei que aproveitei a dança do Professor Rodrigues para me fantasiar todo de branco, com uma farda confecionada pela mãe do meu amigo, a quem também chamava amiga.
Aperaltei-me, com uma boina do José Isidro, atravessei o caminho depois do almoço (já morava na Rua Serpa Pinto) e sentei-me num banco da Praça da República para engraxar os sapatos, pedindo ao engraxador que não sujasse a beira das calças com lustro. Ele preferiu rir-se em vez de tomar a peito esta desconsideração pelo seu profissionalismo.
À janela de casa, minha mãe e a minha amiga Maria Alice, sorriam como se contemplassem um Príncipe (para elas eu era-o).
Estava sol aberto e uma aragem fresca descia pela Espalamaca abaixo. O inverno caminhava para o fim. Parece que foi ontem…
Souto Gonçalves
Publicado também no jornal Incentivo, na sexta-feira, 29 de março de 2019

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