Cousas da “nossa terra”
No sossego da manhã, enluarados estão os campos...
Maria e Tónio, erguem-se. Sentada na beira da cama, ela faz a trança ainda negra, enrolando-a num “poupo”.
- Mexe-te mulher!
- Credo, home, inté parece c’anda o fogo cá drento, devagar, se começa o dia, bai mas é tirar o bibo, q’eu inda bou à cozinha buscar a bolça da merenda, e a ti Ana do Arrocho inda não chamou p’la gente.
Descendo as escaleiras , tónio tira o bibo, abrindo cortes e cortelhos.
- Já te disse, Maria, o raio das pitas só m’impecilham.
- Cala-te, home, qu’inda bão dando uns oibinhos.
- Já disse! Num quero cá desse gado, vai-te lucro que me dá perca... E as vacas trazem cá uma esgana por causa do raio das pitas...
Manhã fora, juntam-se como tufos de flores na Primavera, rios ondulados, caminhando que a leira é grande e há que sachar o milhão.
Maria ri, sentada a canchas-pernas na burra.
Como uma seara baloiçando, os corpos baixam-se, sacham, limpam, e cantam:
P’lo mar abaixo
Vai um piparote
Se ele tiver vinho,
Tirai-lhe o batoque.
Hora do meio dia, na casa de um relógio medido pelo sol.
Nos rostos tisnados, em mudo consentimento, rezam e juntam-se á volta do castanheiro.
Hora pequena, apetecida...
Saindo das bolsas salpicão e presunto, nacos de broa, tirando todos da mesma malga esgaritada, mãcheias de azeitonas, entornando goela abaixo, golos de vinho do molato.
- Ora bão bendo, a chiba da ti Questódia Ferrolha anda a roer os gaimões.
- Cala-te, quinda a somana d’alem, a levei ao preto da ti Maria Chamiça e olha qu’é um chibo bô.
- Diz que está comá bitela do Morcas, inté já lá foi o emprenhador e sabeis o que diz o home? Diz p’ra lhe dar umas inchechões.
- Credo, Santo nome de Jesus, como é qu’áde a chiba imprenhar com inchechões?
Maria olha o sol, e corta aquela conversa de vidas diárias que se repetem.
- Olhe ti Questódia, coma mas é o presuntinho e beba mais uma pinga, qu’a leira inda nem no meio está e vocemecê, bem sabe que o milhão precisa sachado...
- Cá m’importa c’o milhão, ou c’a milhoa, qu’ando morrer bou deitada...
- Ó ti Questódia, vocemecê também me saiu cá uma doletra!
Estrada fora, partem ao toque das Avé-Marias. Cansados, despedem-se, indo acomodar o bibo.
Noite já, Maria ainda vai à horta apanhar um braçado de caldo prós porcos.
- As coibinhas já só tem olho, a sequeira é tanta! E não chobe, que miséria vai ser este ano...
- Deixa lá mulher, Deus bem sabe o que faz, bai mas é fazer a áuinha d’arroz, e bamo-nos deitar, c’á manhã temos d’ir cortar o feno, lá pró inferno das Zaroteias.
Espaço próprio, impossível de repetir-se, são as aldeias Beiraltinas, cantos do mundo, fora do tempo.
Do lado norte da vida, a terra é casa, paz e morada, é ali que se prolongam os dedos, a alma... rítmicas raízes.
Terra, anca fecunda, deste suor que sorri, porta extrema do amor e da memória, e na casa do peito, uma urgueira florindo, tocando o sol-posto num toque de finados.
Secreta retina, com a terra, como irmã ou filha à ilharga.
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