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sábado, 29 de junho de 2019

Da poetisa-escritora Maria Azevedo - Cousas da “nossa terra”


Cousas da “nossa terra”

        No sossego da manhã, enluarados estão os campos...
       Maria e Tónio, erguem-se. Sentada na beira da cama, ela faz a trança ainda negra, enrolando-a num “poupo”.
       - Mexe-te mulher!
       - Credo, home, inté parece c’anda o fogo cá drento, devagar, se começa o dia, bai mas é tirar o bibo, q’eu inda bou à cozinha buscar a bolça da merenda, e a ti Ana do Arrocho inda não chamou p’la gente.
       Descendo as escaleiras , tónio tira o bibo, abrindo cortes e cortelhos.
       - Já te disse, Maria, o raio das pitas só m’impecilham.
       - Cala-te, home, qu’inda bão dando uns oibinhos.
       - Já disse! Num quero cá desse gado, vai-te lucro que me dá perca... E as vacas trazem cá uma esgana por causa do raio das pitas...
       Manhã fora, juntam-se como tufos de flores na Primavera, rios ondulados, caminhando que a leira é grande e há que sachar o milhão.
       Maria ri, sentada a canchas-pernas na burra.
       Como uma seara baloiçando, os corpos baixam-se, sacham, limpam, e cantam:
               P’lo mar abaixo
               Vai um piparote
               Se ele tiver vinho,
               Tirai-lhe o batoque.
       Hora do meio dia, na casa de um relógio medido pelo sol.
       Nos rostos tisnados, em mudo consentimento, rezam e juntam-se á volta do castanheiro.
       Hora pequena, apetecida...
       Saindo das bolsas salpicão e presunto, nacos de broa, tirando todos da mesma malga esgaritada, mãcheias de azeitonas, entornando goela abaixo, golos de vinho do molato.
       - Ora bão bendo, a chiba da ti Questódia Ferrolha anda a roer os gaimões.
       - Cala-te, quinda a somana d’alem, a levei ao preto da ti Maria Chamiça e olha qu’é um chibo bô.
       - Diz que está comá bitela do Morcas, inté já lá foi o emprenhador e sabeis o que diz o home? Diz p’ra lhe dar umas inchechões.
       - Credo, Santo nome de Jesus, como é qu’áde a chiba imprenhar com inchechões?
       Maria olha o sol, e corta aquela conversa de vidas diárias que se repetem.
       - Olhe ti Questódia, coma mas é o presuntinho e beba mais uma pinga, qu’a leira inda nem no meio está e vocemecê, bem sabe que o milhão precisa sachado...
       - Cá m’importa c’o milhão, ou c’a milhoa, qu’ando morrer bou deitada...
       - Ó ti Questódia, vocemecê também me saiu cá uma doletra!
       Estrada fora, partem ao toque das Avé-Marias. Cansados, despedem-se, indo acomodar o bibo.
       Noite já, Maria ainda vai à horta apanhar um braçado de caldo prós porcos.
       - As coibinhas já só tem olho, a sequeira é tanta! E não chobe, que miséria vai ser este ano...
       - Deixa lá mulher, Deus bem sabe o que faz, bai mas é fazer a áuinha d’arroz, e bamo-nos deitar, c’á manhã temos d’ir cortar o feno, lá pró inferno das Zaroteias.
       Espaço próprio, impossível de repetir-se, são as aldeias Beiraltinas, cantos do mundo, fora do tempo.
       Do lado norte da vida, a terra é casa, paz e morada, é ali que se prolongam os dedos, a alma... rítmicas raízes.
       Terra, anca fecunda, deste suor que sorri, porta extrema do amor e da memória, e na casa do peito, uma urgueira florindo, tocando o sol-posto num toque de finados.
       Secreta retina, com a terra, como irmã ou filha à ilharga.

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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