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terça-feira, 25 de junho de 2019

Do jornalista Souto Gonçalves - 17 – DEI COMIGO A PENSAR…


17 – DEI COMIGO A PENSAR…
… ainda no circo e na minha cabrita

Estou bastante satisfeito. Algumas pessoas, talvez uma dúzia, têm-me abordado na rua para dizerem que gostam de ler as recordações que escrevo no jornal.
Ora quem escreve para o jornal aquilo que mais anseia é ser lido, daí a satisfação que sinto. Mas as responsabilidades aumentam quando se percebe que o leitor é exigente.

No Domingo do Espírito Santo, depois das sopas em Castelo Branco, uma senhora dirigiu-se a mim, num tom cordial, mas de dedo em riste: aguardo o Incentivo de sexta-feira!

E cá estou eu, hoje para completar a história do Circo Faialense.

Este circo, na sua simplicidade e enquanto brincadeira de rapazes, não deixou de ser, todavia, uma ideia engraçada. Atualmente dir-se-ia que foi uma iniciativa empreendedora. Há 50 anos era somente a imaginação a trabalhar e uma forma de ocupar o tempo no crepúsculo dos dias estivais.

Naquele tempo, para nós, crianças chegadas à adolescência, o circo verdadeiro era o deslumbramento total. De passagem pelo relvão da doca, se havia sinais da chegada do circo (lembro-me do Circo Mexicano e do Circo Brasil) nunca mais dormíamos descansados.

Tenho na memória o «Mário», um artista que se equilibrava num fio e os palhaços, que não precisavam de fazer muito para desprender as gargalhadas da plateia. O pior era quando interagiam com o público. Se eu estava sentado ao alcance deles numa das primeiras filas e davam mostras de se aproximarem, então era o pânico…

Também me lembro do Poço da Morte, quando veio ao Faial um motociclista que se exibia por dentro das paredes de um enorme cilindro.

Depois veio a televisão e tornei-me fã dos Doria, família de trapezistas de uma série que relatava a vida nos bastidores de um circo.

Agora, aparece por cá uma espécie de circo, que é pouco mais do que o desfile de animais exóticos assustados.

O Circo Faialense não tinha animais – só o galo do Tonecas, do qual falei há oito dias --, nem beldades altas, bonitas e insinuantes, que quando as víamos na rua nos causavam alguma desilusão, parecendo 10 anos mais velhas.

Sem estes «ingredientes» o nosso circo alcançou, no entanto, assinalável sucesso… entre familiares, amigos e vizinhos, ao ponto de meu pai se queixar de não ter um banco na cozinha ou uma cadeira na sala para se sentar e descansar, pois a logística do espetáculo tinha prioridade.

Havia trapezista. O António Manuel «Cacá» pendurava-se de pés para o ar numa corda de nylon presa nas traves da loja.

O cartaz foi ganhando notoriedade.

Num dia à tarde, a Senhora Natália Freitas Correia, nossa vizinha, apareceu pela entrada acima. Queria falar com minha mãe. Com a serenidade e simpatia que ainda hoje mantém ao cabo dos seus 80 anos, confidenciou que o filho também gostava de entrar no circo.

É óbvio que minha mãe, na sua função intermediadora, disse logo que sim. No entanto, a Senhora Natália quis demonstrar que não se tratava de uma brincadeira.

Chamou o filho, nem mais, nem menos do que o José António Correia (hoje enfermeiro do nosso hospital e velejador nos tempos livres) e pediu-lhe que mostrasse o que era capaz de fazer.

O José António pôs no chão um cilindro de fibrocimento, cruzou uma tábua por cima, colocou um pé de cada lado e ali ficou, equilibrado, a balancear-se com um à vontade de verdadeiro artista.

Os membros do circo foram informados e o José António atuou já no espetáculo seguinte, perante o agrado geral. Se a comunicação social tivesse feito notícia poderia titular «a contratação» da época.

O negócio prometia. O mercado respondeu bem, mas, na verdade, a oferta começou a ficar maior do que a procura, pois a família e a vizinhança não eram de tal maneira numerosas que aguentassem um verão completo em sessões circenses.

Surgiu a oportunidade para dar um salto em frente.

Tal como no dia em que o Guido e o Tonecas apresentaram a ideia de fazer um circo, conforme relatei anteriormente, também foi à tardinha que o Antonino desceu do cimo da Canada dos Almances e veio ter connosco.

A proposta era que o Circo Faialense fosse atuar aos Almances.

O convite era honroso, mas o problema o mesmo que levou o Guido e Tonecas a sugerirem a loja de minha avó para as atuações: falta de espaço.

Mas o Antonino não veio de mãos vazias. Havia uma atafona, naquela época do ano o gado ficava na rua, as traves eram fortes e, com alguns arranjos e limpezas, as condições estariam reunidas.

A deslocação aos Almances não se concretizou. Sinceramente não me lembro bem o que é que nos levou a não aproveitar a oportunidade. Julgo que o Guido e o Tonecas ainda foram ver a atafona, mas acho que minha mãe não estava com muita vontade de me deixar ir, com meu irmão, lá p’ró cimo da Canada dos Almances.

Há poucos anos ainda existia uma tábua com o nome do circo, o preço dos bilhetes e a hora do espetáculo, que colocávamos no jardim de minha avó, à beira do caminho.

O que resta, hoje, é uma recordação bonita, das tardes de verão em que, para além do circo, se brincava até anoitecer na rua.

No regresso a casa, exaustos, saltávamos para dentro de uma selha grande, na cozinha e com água aquecida num tacho de alumínio e sabão azul minha mãe esfregava-nos os joelhos com uma pedra queimada, redonda, ligeiramente áspera.

Eu comia sopas de café com leite, «Molico» (ainda não havia «Nesquick»), rodelas de banana e queijo manteiguento.

Depois enfiava-me na cova do colchão de casca de milho, numa barra (cama) antiga. A muito custo minha conseguia que eu rezasse: meu anjo da guarda, minha companhia/ guardai a minha alma/ de noite e de dia/ meu anjo da guarda/ meu guardador/ guardai a minha alma/ para Nosso Senhor.
Quando ela me osculava a fronte eu já estava mais para lá do que para cá. O dia fora intenso! Nem as cagarras esvoaçando aos gritos, ou os grilos impertinentes me importavam. Sabia que me esperava mais uma jornada de sol, brincadeira, amizade, aventura e liberdade. Era o verão a oferecer tudo o que tinha e o campo disponível para a vida.

O prenúncio da alvorada seguinte era o passo ligeiro e cadenciado dos cavalos que carregavam os seus danos para a ordenha. Bastava-me ouvi-los e fixar a ordem por que passavam para saber quem os montava: o Senhor Manuel Braia numa égua amarela, que levantava muito as mãos; o Senhor Chico Caetano noutra égua, vermelha e o Senhor José Soares num cavalo vermelho escuro. O burro esbranquiçado do Senhor Manuel Caldeira quando zurrasse o sol já tinha nascido.

Eu só saltava da cama quando minha mãe abria a porta da cozinha e uma cabrita, que se chamava Janota e que criámos com pão, vinha até ao meu quarto berrando…

Cresceu e meu pai levou-a para o matadouro numa camioneta. Hoje ainda vejo nitidamente os seus olhos, num canto da caixa, fixados em mim. Nesse dia não brinquei quase nada.

Souto Gonçalves
Publicado também no jornal Incentivo, na sexta-feira, 14 de junho de 2019
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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