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sexta-feira, 21 de junho de 2019

Do jornalista Souto Gonçalves - 18 – DEI COMIGO A PENSAR…


18 – DEI COMIGO A PENSAR…

… nos sopapos que levei

Nunca gostei de me deitar cedo. Claro que quando ainda andava na escola primária não tinha outro remédio senão adormecer com as galinhas porque minha mãe me obrigava a isso. Já no Liceu não foi bem assim.

Lembro-me perfeitamente de meus primos, mais velhos, depois do jantar chegarem ao pé de minha tia e dizerem: vou dar uma volta!

Aquilo provocava-me um desejo imenso de também ir, mas, claro, tinha que ficar em casa pois a idade não permitia saídas à noite.

Atrás de tempo, tempo vem e já rapazote ganhei o direito de ir dar uma volta com os meus amigos.

A nossa cidade era, nessa altura, bem mais animada, ao contrário de hoje, pois por vezes parece uma cidade fantasma, com as suas ruas despidas mesmo a horas pouco tardias. Até o hábito de dar um passeio para ir ver as montras se perdeu…

Eu e o José Lemos (Medalhas) saímos um dia à noite. Íamos pela Rua Serpa Pinto adiante e lembrámo-nos de telefonar ao Paulo Moura, nosso amigo (atualmente médico no Hospital da Hora), para vir cá abaixo. Ele morava na Rua Conselheiro Terra Pinheiro.

Não havia telemóveis e não houve ainda durante muitos anos. Fomos ao telefone público que existia nos Correios (onde hoje funciona a Meo), metemos uma moeda, ligámos e começámos a falar.

A conversa demorou. Enquanto isso, apareceram três personagens atrás de nós.

Eram um pouco mais velhos do que eu e o Lemos, mas nitidamente mais fortes. Queriam telefonar. Mas a gente é que estava telefonando.

Talvez porque a noite estivesse tranquila de mais arranjou-se então ali um pretexto para animá-la. Eles insistiram para nos despacharmos, nós prolongámos o telefonema porque estávamos pagando e o caldo ficou entornado.

Começou a discussão e sem que eu desse por isso levei um soco na boca do estômago! Pois nunca senti tantas agonias na minha vida, sem poder respirar.

Vendo o meu estado o agressor terá pensado que tinha exagerado e a coisa ficou por ali quanto a sopapos.

Após o meu restabelecimento avisámos que íamos fazer queixa à Polícia, ali a dois passos (onde hoje funcionam as Finanças). Os meliantes não se intimidaram.

Explicámos o caso ao agente de serviço que veio à porta e chamou os três farsolas. Começou a conferência e acabou com uma recomendação para que todos tivéssemos mais juízo.

Não vou dizer o nome para eles não ficarem chateados, mas a verdade é que hoje temos uma relação normal e até uma certa amizade por qualquer um deste três rapazes que, tal como nós, se quiseram armas em espertos numa tranquila noite na nossa ainda mais tranquila cidade.

De qualquer maneira nunca mais me esqueci do episódio, pois tratou-se do segundo soco que até agora apanhei na minha vida. O primeiro, quando andava na 1.ª classe, foi o Gambão que mo deu, ao pé da Torre do Relógio, local de brincadeira depois da escola. Só depois de levar o segundo é que percebi que isso de andar à pancada não é vida para mim e tenho mantido esse registo. A exceção é alguma virulência verbal ou escrita, que no entanto faz parte da minha maneira de ser.

Comecei por dizer que nunca gostei de me deitar cedo. Quando não andava nestas voltas ficava tempos esquecidos no meu quarto, em casa, madrugada fora, escrevinhando sentado numa secretária.

Sempre sonhei ter uma secretária para os meus papéis, que no entanto nunca estão arrumados.

A D. Gabriela Bulcão ofereceu-me essa secretária, de madeira. Depois do terramoto de 1973, passou uns tempos em nossa casa, com as suas irmãs Lucília, Alice e Maria, antes de se mudar da Alameda do Barão de Roches (Rua das Árvores) para Castelo Branco, terra natal.

A D. Maria Bulcão trabalhava na secretaria do Colégio de Santo António e depois da hora do serviço dava-me explicações de gramática e francês. Que hora penosa! A algazarra dos meus amigos em cima das suas bicicletas na Praça da República e eu em casa a ler textos de francês e a conjugar verbos em português…

A D. Maria Bulcão era uma pessoa culta e metódica e deixou informação compilada sobre algumas instituições da sua freguesia (Castelo Branco), se não estou em erro relativas à filarmónica Euterpe e ao «Clube de Cima» (Sociedade União Recreio e desporto), cuja história está muito ligada à família Bulcão.

A D. Gabriela distinguia-se por uma delicadeza extrema e seriedade sem limites. Foi muitos anos «a caixa» da mercearia e do talho de meu avô e de meu pai, na Rua Serpa Pinto, junto ao mercado.

Trabalhava num cubículo, envidraçado, na mercearia, mas com acesso ao talho através de um guiché. Era, do ponto de vista da correção, do rigor e da simpatia, uma autêntica imagem de marca da Casa Casimiro Gonçalves (desculpem-me esta vaidade, ao qualificar o negócio dos meus familiares).

A D. Gabriela tinha uma caligrafia única, bonita, regular e barroca. Escrevia devagarinho, as letras e os números, feitos como quem desenhava, eram uma obra de arte.

Eu apreciava aquilo, até porque a minha letra sempre foi muito irregular e ainda é.

À saída da escola eu e meu irmão íamos para a mercearia com o fito de pedir a meu pai para darmos uma volta de bicicleta na Praça da República. Só que antes tínhamos sempre que varrer o chão da mercearia para conseguir a desejada autorização.

Nos entretantos púnhamo-nos atrás da D. Gabriela enquanto ela fazia os trocos e a escrita.

Havia ainda centavos e à sua esquerda encontrava-se um frasco grande de rebuçados de fruta que serviam para substituir, no troco, as moedas mais pequenas quando faltavam.

Está-se mesmo a ver qual o objetivo desta «guarda de honra». De vez em quando a D. Gabriela levava a mão ao frasco e, para além do troco, sobravam sempre dois ou três rebuçados para nós.

Havia ainda outro motivo para irmos ao final da tarde para a mercearia. Perto de fechar a loja e depois de termos dado alguma ajuda numa ou noutra tarefa meu pai deixava-nos comer um chocolate cada um, mas tínhamos que tomar nota da despesa e entregar à D. Gabriela, numa atitude educativa que reconheço a meu pai. Meu irmão comia um «Regina» com amêndoa e eu outro com creme. O de amêndoa, embrulhado em papel vermelho e dourado, ainda existe, o de creme, infelizmente, já não se fabrica.

Foi por estes anos que chegou a televisão. Comprámos uma Telefunken.

Minha avó tinha conhecido, na Piedade do Pico, onde nasceu, uma regente escolar, D. Mariana, que veio viver na velhice com a sobrinha Berta para a Rua de São João. Ambas, por sua vez, tinham feito amizade com a D. Maria, esposa do capitão Saraiva, nossos vizinhos.

Amizades fazem amizades e, todos os dias, depois do jantar, a nossa campainha tocava. Subiam as escadas a D. Maria Saraiva, a D. Mariana e a D. Berta. Minha avó já estava na sala de jantar onde, a um canto, foi montada a televisão.

A hora da telenovela tornou-se um momento sagrado e sentido como a vida real: choro, risos, lamentos, sinais de aprovação, censura. Ao sábado o horário era diferente, porque dava a Heidi a meio da tarde!

Souto Gonçalves

Publicado também no jornal Incentivo, na sexta-feira, 21 de junho de 2019

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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