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segunda-feira, 29 de julho de 2019

Da Califórnia de João Bendito - O DANIEL “MARGARIDA” VAI À GRACIOSA!


O DANIEL “MARGARIDA” VAI À GRACIOSA!

A pequena cidade de Auburn, minha vizinha de Condado e de fronteira territorial, é um lugar muito aprazível.

Foram três franceses, pesquisadores de ouro, que praticamente fundaram a cidade. Isto é como quem diz, eles descobriram um filão do precioso metal e assentaram arraiais nas margens da confluência de dois braços do American River. Outros aventureiros seguiram-lhes as pisadas – o ouro atraia gente de todo o Mundo – e o burgo foi crescendo, adicionando comerciantes e malandrecos que se aproveitavam das mãos-largas dos garimpeiros. Desde 1849 até agora, Auburn foi mudando o seu estilo de vida, já que a febre do ourodesceu de temperatura. Já não o há por estas bandas, ficaram alguns bonitos edifícios históricos que foram testemunhas daquela época dourada. Rodeada por férteis pomares e procurada por muitos desportistas da natureza que exploram os trilhos pedonais nas matas e praticam canoagem nos rios, Auburn não conseguiu passar dos 15 mil habitantes e bem bom que assim é, há muita natureza ao redor para preservar.

Nesta pequena cidade, já há largas dezenas de anos, vive o meu amigo Daniel “Margarida”. É um dos graciosas mais gracioso que eu conheço. Deixou a Ilha Branca, na companhia da sua simpática esposa, Francelina, quando tinha 26 anos (ela tinha 21) e agora já vai a caminho dos 85. Nunca o ouvi cramar com dores, não se queixa de doenças ou infortúnios, o único lamento que lhe cruza os lábios é o provocado pela saudade da sua terra. Regressou várias vezes de férias mas agora diz que já não vai mais lá. “Tenho só uma irmã viva, João, ela já nem me reconhece”, disse com um sopro de tristeza nos lábios. “Pronto, não tenho nada que ir lá fazer”. Mesmo, na última vez que cruzou o continente americano e o rio Atlântico, foi vítima de atrasos e manobras por parte da SATA que os fizeram perder três dias de férias para além de outros transtornos. “Nem o dinheiro que nos deram chegou para pagar o hotel na Terceira”, informou-me, desanimado.

                                                    
Eu consolo-me a falar com o Daniel. O sotaque puro que ele ainda mantem transporta-me até aos lagares, aos currais das vinhas, às pacatas ruas que se cruzam de modo que, de todas, se pode chegar à beira do mar. O Daniel traz a ilha na voz e nos olhos. Basta olhar para ele, vejo-o a ver tudo e consigo, ao mesmo tempo, acompanha-lo na sua peregrinação pelas canadas e caminhos das Dores, da Cruz do Bairro, nas pescarias nos calhaus do Barro Vermelho.

Recorda tudo, o Daniel. Diz-me das casas dos vizinhos e parentes, dos seus amigos de juventude, da amizade que o ligou ao meu tio Carlos. “Quando falares com ele, João, dá-lhe um abraço meu”, pediu-me várias vezes. Parece-me até que a insistência para que fosse a sua casa esta tarde era só para me avivar a memória, para que eu não me esquecesse do abraço. E mostrou-me coisas que guarda e que preza em ter... um relógio de mesa, mais que centenário, que o pai, imigrante na Califórnia muito antes ainda de ter casado com a mãe do Daniel, levou para a Ilha mas o meu amigo, numa das suas viagens de saudade, trouxe-o de novo para a terra de origem. Está ali, coberto com um naperom de renda, mudo e quedo, sem movimento. Ao lado do relógio, num caixilho branco, outra preciosidade que viajou para a Graciosa e voltou ao Estado Dourado, um mais que bonito calendário do ano de 1905, com as estações do ano representadas por lindas bonecas de porcelana. O Tempo parece que parou na casa do Daniel. O que não teve vontade nenhuma de trazer, disse-me, “Foi aquele par de sapatos que comprei na mercearia-ambulante do «Traquitana», faziam-me cais nos pés”.

Num envelope de plástico transparente, preso na parede da salinha, vi um recorte do Auburn Jornal, um dos periódicos que cobre esta zona. Com orgulho, vendo que a modéstia do Daniel não o iria deixar contar a estória em condições, a senhora Francelina explicou-me que ele teve honras de página de jornal porque, em 2011, num dos seus passeios pela baixa da cidade, Daniel encontrou um envelope do Wells Fargo Bank com uma pequena fortuna dentro. Eram 2 mil dólares ao todo, notas verdes e brilhantes. Daniel nem pensou muito, foi entregar o dinheiro a um agente da polícia. Este, por sua iniciativa, investigou o caso e encontrou a dona do dinheiro. Perguntei ao Daniel se tinha recebido alguma recompensa pela sua boa ação. “Olha, a senhora deu-me uma garrafa de vinho. Ainda está ali, nunca a abri”.

FamíFiquei a conhecer melhor o Daniel “Margarida”, descobri que ele, tal como eu, não é homem de se desfazer de nada. A cave da casa está cheia de tarecos velhos, caixas com coisas que ele já não usa há anos, barris de vinho vazios, garrafas, eu sei lá. No alpendre, um carro azul, ainda em bom estado, de modelo que eu quase nem reconheci. “É um Nissan, de 1985. Tem 34.000 milhas”. Espantado com a longevidade do carro, indaguei porque não comprava um mais moderno. “Para quê? Este ainda me serve bem, já não vou para longe”. E, a brincar, acrescentou: “Só se houvesse uma ponte para a Graciosa!”

Mas não há. O Nissan de ’85 vai continuar à sombra das latadas que rodeiam toda a casa do Daniel, já com verdes cachos, a desafiarem as vespas e os possums, e ali à ilharga do canteiro da hortelã. Despedi-me eu também da latada e do simpático casal, e fiz a viagem de regresso a casa a imaginar-me a conduzir na tal ponte com que o Daniel sonha. Poderia ser que ele me quisesse acompanhar, íamos conversar toda a viagem...

Prometi ao Daniel ir visitar e tirar uma fotografia com a irmã dele. E prometi a mim mesmo que vou levar o Daniel comigo, neste meu regresso à Ilha Branca. O meu amigo vai estar a meu lado quando eu apresentar aos graciosenses o livro “Barro Vermelho – Ilha Branca”, o meu modesto contributo para perpetuar as memórias de outras épocas e de outras gentes. Na minha voz eu levo o cantar dolente do sotaque dele; nos meus olhos eu levo os olhos brilhantes e húmidos do Daniel, para que possa rever a sua juventude; no meu sorriso, eu vou carregar o lindo sorriso de Francelina, para ela poder saudar as amigas de infância; e, nos meus braços, vou concentrar toda a força de um grande abraço para o meu tio Carlos, o amigo que o Daniel nunca esqueceu.

Sentado na sua cadeira preferida, debaixo da latada, o Daniel vai esperar o meu regresso. Assim me disse e eu acredito.

Ele quer que eu lhe traga a Ilha de volta à sua alma.

Lincoln, Ca. julho, 20, 2019
João Bendito
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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