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terça-feira, 2 de julho de 2019

Do catedrático das letras Dr. Carlos Reis - O escritor como mestre: na morte de José Saramago


O escritor como mestre: na morte de José Saramago

Intervenção do professor universitário Carlos Reis, em representação da Fundação José Saramago, na sessão de exéquiasdo Nobel português de Literatura, no dia 20 de Junho de 2010.

As palavras que aqui vos trago são minhas e são de muitos. As palavras a que neste acto dou voz emocionada  prolongam, por certo, o que incontáveis leitores, amigos e admiradores de um grande escritor português chamado José Saramago por todo o mundo têm sentido, desde que se apagou a chama de quem a deu a personagens, a versos e a gestos tão humanos como só as ficções sabem fazê-los. Não são, pois, palavras só minhas as que aqui digo. E sei bem que, falecendo em mim engenho para mais, não cabe nelas tudo quanto tem de ser dito num dia como este. Por isso, peço ajuda a um título de José Saramago, para logo lembrar muito daquilo que o escritor nos deixa: «De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz», anunciou Saramago em Estocolmo, no dia 7 de Dezembro de 1998. Retomo a expressão de humildade e lucidez e, com a permissão do escritor sempre presente, reinvento-a: «De como o escritor foi mestre e o leitor seu aprendiz.»

Assim é. Temos sido, sempre seremos, discípulos do homem escritor que um dia ajudou um avô chamado Jerónimo nas andanças de pastor, com ele cavou a terra do quintal, cortou a lenha para o lume, fez subir água do poço comunitário. É esse o princípio de uma história que verdadeiramente não termina hoje. Mas é bem verdade que foi daquele começo singelo que José Saramago partiu para enfrentar um desafio de impossibilidades várias que o trabalho, o talento e os acasos da vida modelaram num trajecto literário que continua para além deste dia e dos que depois virão.

Muitos e longos caminhos foi preciso andar para que o quase estigma de quem andou descalço até aos 14 anos se volvesse num tal percurso literário. É a esse percurso e ao que dele recebemos que hoje, como eternos aprendizes do mestre inesquecível, pagamos o tributo comovido de uma despedida também ela impossível. Porque soube ser uma personalidade em quem uma cultura se  identifica, em quem uma literatura se ilustra e em quem um idioma se singulariza, José Saramago não parte “ligero de equipaje”, como o grande poeta que um dia se foi, tragicamente ignorado pela ingratidão dos homens. De José Saramago fica-nos um legado inestimável e precioso, fruto do milagre que a literatura e as suas palavras favoreceram: a água que a criança de pé descalço fazia subir do poço transmutou-se, fluiu no longo rio de muitos relatos e desaguou, sempre viva e sempre cristalina, nas histórias que o escritor nos contou, nos poemas que escreveu, no teatro que construiu. E assim, com José Saramago e de José Saramago, recebemos a herança de uma memória longínqua e contudo para sempre presente: a das noites da infância, cujo negrume só a magia do contador de histórias conseguia rasgar. Disse-o José Saramago, sempre evocando o profundo saber do avô Jerónimo: «Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava» (p. 12).

O «dificílimo acto de escrever»

Desse «rumor de memórias» viveu e viverá a literatura de um grande escritor, acrescentando-se a  ela uma aguda e inquieta autoconsciência do trabalho da escrita literária e da ética que a sustenta.  Justamente: o primeiro romance em que José Saramago se fez romancista duradouro, Manual de Pintura e Caligrafia de seu nome, foi sobretudo uma tentativa em torno da escrita e da representação; antevia-se nele o que o escritor depois haveria de descobrir, de novo em contexto ficcional, e que assim se disse, n’A Jangada de Pedra: «Dificílimo acto é o de escrever, responsabilidade das maiores.»

José Saramago aprendeu a ser escritor cultivando o «dificílimo acto de escrever» que de outros herdou. Para que assim pudesse ser, muitas e singulares coisas aconteceram na história pessoal de José Saramago, uma história de impossibilidades outras, anteriores ainda às da ficção. Foi ele quem o disse no discurso de Estocolmo, sem todavia tudo revelar. Disse da sua infância, dos avós que o criaram, dos livros que leu e também de uma certa linhagem familiar em que o escritor galardoado com o Prémio Nobel sempre se apoiou e reviu: «Um avô berbere, vindo do Norte de África, um outro avô pastor de porcos, uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor no retrato – que outra genealogia pode importar-me? a que melhor árvore me encostaria?» (p. 16).

A genealogia de Saramago não é apenas a da família que o honra por ter sido ela quem foi, pois que àquela veio juntar-se um outro movimento de descendência, desenvolvida nos ramos de uma frondosa árvore literária. Expressa ou tacitamente, visivelmente ou de forma sinuosa, José Saramago e a sua literatura entroncam no padre António Vieira, cultor da metáfora, da parábola exemplar e da tensa dialéctica argumentativa; em Montaigne e na vocação sentenciosa e reflexiva de quem ensaia para devassar o desconhecido; em Garrett e na sua inovadora língua literária; em Raul Brandão e no discurso que vai da narrativa à intuição lírica e à indagação especulativa; em todos estes e também, por diversas formas, em Camões, em Fernando Pessoa, em Almada Negreiros e em Kafka. Em diálogo com todos e com cada um deles enunciou José Saramago as «obscuras verdades da competição e da contaminação» de que falou Harold Bloom, o mesmo renomado crítico que em Genius: A Mosaic of One Hundred Exemplary Creative Minds disse do autor do Memorial do Convento: é «o mais talentoso romancista vivo nos dias de hoje». Um mestre, acentuou ainda Bloom.

Os «mestres de vida»

Um mestre que aprendeu a sê-lo, acrescento agora. E volto à aprendizagem. Naquele discurso de Estocolmo que já mencionei, leio, em certo momento, a mais densa homenagem que um escritor pode fazer à literatura e aos que crêem no seu poder libertador: aprender com ela, ser criatura desses que ele mesmo criou. «A pessoa em que hoje me reconheço», declarou José Saramago, é «criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas» (p. 17). E mais: são esses os «mestres de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro ofício de viver, essas dezenas de personagens de romance e de teatro que neste momento vejo desfilar diante dos meus olhos, esses homens e essas mulheres feitos de papel e de tinta, essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as minhas conveniências de narrador e obedecendo à minha vontade de autor» (p. 18).

Por isso as convoco eu neste dia e nesta hora, como fascinantes seres de papel que vivem a perenidade de uma existência que transcende a do escritor. «Amigos e conhecidos que nunca existiram», disse Fernando Pessoa num texto famoso sobre os seus heterónimos, «mas que ainda hoje […] oiço, sinto, vejo.» E para que dúvidas não ficassem, o genial poeta reforçou: «Oiço, sinto, vejo... E tenho saudades deles.»

Das personagens de José Saramago, magistral inventor de ficções que ecoam no quotidiano palpável das nossas vidas, bem podemos dizer o mesmo. Todas são, por fim, mestres do escritor e nossos mestres, sempre que nas suas acções, nos seus rostos e nas suas palavras reencontramos a sabedoria de homens e de mulheres legitimados pela autonomia e pela incondicional possibilidade que a ficção lhes confere; homens e mulheres chamados Baltasar e Blimunda, Ricardo Reis e Bartolomeu Lourenço, Raimundo Silva e José, Maria Sara e Oriana, Lídia e Maria de Magdala, Joana Carda e Cipriano Algor, o elefante Salomão e o seu cornaca, Tertuliano Máximo Afonso e António Claro, sua cópia exacta e duplicada – ou vice-versa. E mesmo quando o nome não está lá – como em Ensaio sobre a Cegueira e em Ensaio sobre a Lucidez – é a sua omissão, como falso anonimato, que alegoricamente projecta os homens e as mulheres da ficção sobre o mundo real em que revemos dramas e conflitos ficcionais identificados como nossos e porventura com os nossos nomes. Citando um título conhecido: identificados com Todos os Nomes que no nosso mundo se encontram; ou ainda, lembrando palavras do escritor, no discurso de Estocolmo: «Não escritos, todos os nossos nomes estão lá» (p. 33).

Sob o signo do poder subversivo da linguagem

São estas figuras e outras mais (sem esquecer um cão chamado Constante), com nome inscrito ou sem ele, que nos provocam (provocare: chamar para fora), ao mesmo tempo que nos  propõem sentidos que os transcendem e que nos transcendem, sob o signo do poder subversivo da linguagem. É esse poder que José Saramago invoca, quando um minúsculo e redondo vocábulo – um simples não – suscita a reconstrução histórica de um universo afinal fragilizado por esse poder subversivo; e é ainda em clave de subversão que o romancista enuncia a alegoria da fractura e da deriva, engenhosa indagação ficcional do destino ibérico; ou a metáfora do regresso e do reencontro com a pátria, sentidos camonianos mas também, à sua maneira, pessoanos; ou a imagem do colectivo e do seu poder redentor, no termo de um processo histórico que conduz à libertação dos levantados do chão; ou a imagem da construção e a sugestão ascencional que a confirma, quando se ergue o convento que a vontade real idealizara, ao mesmo tempo que a passarola voa; ou a representação da cegueira colectiva em que se surpreende uma condição humana degradada na repulsiva violência do seu egoísmo. Isso tudo e também o árduo trajecto da existência humana, a dissolução da identidade, a contestação da ortodoxia religiosa, a celebração da rebeldia, a revisão da palavra bíblica, a questionação da culpa ou a denúncia da arbitrariedade divina.

Também por isso, na vida literária como na vida pública em que ela se inscreveu, José Saramago jamais deixou de interrogar os outros e de interpelar verdades estabelecidas e instituições dominantes. O que levou a que um grande escritor sempre tivesse recusado a acomodação no conforto da fama e nos enleios da celebridade? Resposta clara: uma constante e militante vocação para desassossegar imagens feitas, representações cristalizadas e mitos aparentemente inatacáveis. Assim foi ao longo de décadas, sempre que para Saramago estiveram em causa figuras históricas, poderes públicos, religiões e suas contradições, derivas políticas ou episódios do nosso destino colectivo. É isso que é próprio dos grandes escritores e também neste plano ele soube sê-lo, consciente como sempre esteve de que a literatura existe para afirmar, de forma variavelmente expressiva, o princípio da subversão da norma, da doxa e da verdade em que se crê cegamente. A ordem que a rege é, por paradoxal que pareça, o constante movimento que aponta para a sua derrogação. E isto sabendo-se bem que da heterodoxia à heresia vai um passo curto que os escritores e os artistas não raro foram acusados de dar, muitas vezes pagando por isso um preço alto. Quando emerge uma tal acusação, entramos irremediavelmente no terreno da moral. Fora dele está a literatura – e, de forma às vezes provocatória, a grande literatura. Foi esse lugar heterodoxo o espaço que José Saramago habitou.

É deste grande romancista que hoje nos despedimos. Romancista e também poeta, dramaturgo, ensaísta, diarista, contador de viagens e o mais que nele iremos descobrindo e redescobrindo, sempre que os seus textos confirmarem, no mágico e íntimo momento de cada leitura, a sua presença viva entre nós: pelas figuras a que deu vida, pelas imagens que traçou, pelas histórias de amor que nos confiou, pelas conquistas de que fez crónica ficcionada, pelos mundos que nos seus romances construiu, pelos mitos que questionou. Por isso mesmo, é esta uma despedida sem adeus. De José Saramago fica connosco uma literatura que é fermento de eternidade, essa mesma eternidade que só a arte garante, acima e para além de todas as fragilidades da vida. Por isso podemos hoje afirmar acerca de José Saramago o que no seu tempo Eça de Queirós disse da grande arte, da grande literatura e dos seus intérpretes: «A arte é tudo – tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo.» E bem sabendo que «tudo é efémero e oco nas sociedades – sobretudo o que nelas mais nos deslumbra», Eça acrescentou a propósito de  Shakespeare o que agora digo de José Saramago: «Está vivo de uma vida melhor, porque o seu espírito fulge com um sereno e contínuo esplendor, sem que o perturbem mais as humilhantes misérias da carne!»
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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