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terça-feira, 16 de julho de 2019

Do catedrático das letras Dr. Carlos Reis - Grande entrevista no Jornal Expresso (1)


Grande entrevista no Jornal Expresso 

O português está em expansão mas, para se lhe dar uma verdadeira internacionalização, é preciso mais do que boa vontade. É preciso uma política da língua consistente e continuada, que lhe atribua meios e concerte esforços. Para o filólogo Carlos Reis, reitor da Universidade Aberta, o acordo ortográfico também é fundamental para esta tarefa. Nesta entrevista, o professor catedrático em Coimbra, lança pistas e propostas, explica as diferenças com o Brasil e cita o exemplo de Espanha - com a qual advoga uma aliança estratégica - e conclui que esta é uma tarefa que tem de ser conjunta de todos os países de língua portuguesa. Ele foi o coordenador de um estudo sobre a Internacionalização da Língua Portuguesa, que está na base de uma resolução do Conselho de Ministros que, na próxima semana, deverá consagrar, pela primeira vez, uma política da língua. 

Como se faz a internacionalização do português? De várias formas. Através do ensino do português como língua estrangeira. Internacionalizar é fazer do português uma língua oferecida em matéria de ensino a franceses, alemães, ou búlgaros, por exemplo, que não tenham com ela outra relação que não seja entenderem que ela é um idioma importante. Internacionaliza-se também nas escolas secundárias e universidades, fazendo dele uma língua que abre caminho a outros sectores de actividade - penso na economia. É fazer dela uma espécie de vanguarda de presença, que depois é completada por noutros elementos, a economia, os negócios, a ciência, a cultura. Internacionaliza-se também através de entidades, como por exemplo os centros de língua, que trabalham o seu ensino fora das universidades. Dou o exemplo dos centros de língua do Instituto Cervantes, de Espanha, que não estão vinculados as estruturas universitárias, mas estão na rua, ao alcance do cidadão comum.

Portugal tem alguma coisa parecida com isso? Não, o mais parecido mas limitado - embora de nível de excelência - são as escolas portuguesas em Luanda, Maputo, Macau e Timor. Internacionalizar-se uma língua fazendo dela um instrumento de referência cultural e económica, passa muito pelo desenvolvimento. Falamos muitas vezes com certa retórica triunfalista na dimensão demográfica do português, os famosos 200 a 230 milhões de falantes, mas não é bem assim. Esses falantes são em grande parte integrados por povos e países que infelizmente contam pouco no concerto internacional. Uma língua tem escassas possibilidades de se internacionalizar enquanto noutras instâncias que não a linguística (política, económica, científica) esses países não se afirmarem.

Esse é um factor muito notório do português, nomeadamente nos Estados Unidos? Apesar de ter uma presença muito antiga, o português ainda não conseguiu ser uma das 10 línguas "requisito de acesso às universidades", onde está por exemplo o coreano, que não tem a dimensão demográfica do português. Porquê? Porque a presença económica e social da Coreia nos EUA é considerável; está o hebraico, por razões também conhecidas. Por isso, não faz muito sentido falar da política de internacionalização da língua isolada do resto e não tenho pruridos em o dizer: enquanto Angola, sobretudo, e Moçambique, que são países com dimensão demográfica considerável, não ganharem um peso internacional considerável, será muito difícil que o português se internacionalize. O caso do Brasil é a evidência disto. Na medida em que ele está a ganhar uma grande presença e é um país mais poderoso economicamente e com menos desigualdades internas, o português começa a ser um língua com algum poder internacional. Esta é uma zona um pouco melindrosa para alguns, que têm dificuldade em reconhecer que Brasil é aqui uma locomotiva fundamental. Não temos que ter receio disso.

O PAPEL DO BRASIL
Está a falar do acordo ortográfico? Não só. Em termos de melindres, essa foi a manifestação mais evidente e, em pessoas que estimo e cultas e responsáveis, foi mesmo penosa de se ver. Sobretudo o que estava em causa era um enorme preconceito em relação ao Brasil. Curiosamente, algumas dessas pessoas às vezes traduziam isso através de expressões brasileiras que já entraram lexicalmente no português. O português do Brasil tem algumas qualidades que o de Portugal não tem e já entrou no nosso falar desde que a televisão brasileira tem aqui uma presença forte. Há expressões que já nem as identificamos como brasileiras: quem hoje diz ir para a bicha? Diz-se 'para a fila'. Ou 'está tudo numa boa'.

Entraram por via da imigração e das telenovelas. Da televisão, sobretudo. Há aspectos do português do Brasil em que leva vantagem sobre nós. Um deles é a articulação: um filme português passado no Brasil precisa de ser legendado e um brasileiro em Portugal não. Tão simples como isto. Porque os portugueses tendem a obscurecer a língua do ponto de vista articulatório, fonológico, de pronúncia. Engolem as palavras. O português do Brasil valoriza mais as vogais, os fonemas vocálicos, o que é uma vantagem para o bom entendimento. Temos de fazer um esforço de recuperar coisas que se perderam e isso só pode ser feito na escola, lendo expressivamente, obrigando a pronunciar bem as palavras todas. Mas a importância do Brasil neste cenário é evidente desde algum tempo. O Brasil apercebeu-se que a língua é um instrumento estratégico muito importante e o seu anúncio de criação de uma universidade para os países da CPLP no Nordeste não é inocente nem destituída de sentido político.

É curioso que seja no Nordeste? Entende-se que uma universidade deste tipo é um factor de desenvolvimento de uma região pouco desenvolvida, e também porque no Nordeste há uma forte presença africana. Portanto, é como quem diz: 'nós somos a ligação para África'. Com esta iniciativa, o Brasil está a dizer que o grande interlocutor no universo da língua portuguesa para África é ele. Está no seu direito e porventura tem boas razões para isso, económicas, sociológicas, devido à imigração desde os tempos da escravatura. Isto significa o despertar do Brasil de uma forma muito vigorosa para a causa da língua portuguesa como instrumento estratégico.

Foi acordado com Portugal? Não creio, foi anunciado pela primeira vez pelo ministo dos Negócios Estrangeiros Celso Amorim na Guiné-Bissau, em Abril. Não é inocente o lugar do anúncio.

O Brasil tornou-se um 'concorrente? É uma questão que tem de ser desdramatizada. A verdade é que a internacionalização da língua portuguesa também passa pela música brasileira, a moda, o futebol, a economia, muitas outras presenças que significam uma presença derivadamente linguística e que são uma outra forma de fazer política de língua. Convém não esquecer o papel do Brasil na América Latina em matéria de difusão da língua, nomeadamente entre os países limítrofes, como o Uruguai, ou a Argentina.

O ACORDO ORTOGRÁFICO É INDISPENSÁVEL
E o acordo ortográfico? Foi excessivamente dramatizado em Portugal. O acordo é um instrumento ao lado de outros, que vale o que vale, não vai descaracterizar a língua, como se diz, mas vai significar alianças estratégicas, concentração de esforços.

Mas é fundamental para fazer a política de internacionalização do português? É muito importante, e sem ele temos sempre uma fragilidade, vista do exterior, que é o facto de termos duas normas ortográficas oficiais. O que não acontece com o espanhol ou o inglês, que têm apenas variantes ortográficas.

O que nos conduziu a isso? Muitas razões, entre quais a dimensão. Espanha: que aconteceu na América do Sul no principio do século XIX para cá? O domínio espanhol fragmentou-se numa série de repúblicas relativamente pequenas, ao passo que a presença colonial portuguesa deu lugar a um grande país. Ainda por cima, as respectivas metrópoles eram assimétricas, Espanha é quatro ou cinco vezes maior que Portugal. Espanha continua a ter um grande ascendente em todos os aspectos, a começar pelo económico, sobre as suas antigas colónias, Portugal não. Mais, Espanha soube ter ao longo dos séculos instrumentos reguladores que funcionam difusamente como instrumentos de política da língua. Já para não falar do mais antigo deles, a Real Academia de Ciências, e dos instrumentos normativos que ela produz, como o dicionário, que é respeitadíssimo entre o mundo que fala espanhol.

Continua
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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