A DOCA DA LIBERDADE
[Publiquei o texto que se segue atribuindo a autoria do mesmo, como é de elementar justiça, a
Francisco Ferreira, já que está publicado na respetiva cronologia sem assinatura, o que leva a supor que quem o publicou foi quem o escreveu. Acontece que acabo de ser alertado para o facto de o texto em causa ter sido escrito e publicado por António Bulcão. Nestes termos peço desculpa ao verdadeiro autor e aconselho a quem o inseriu no Facebook como sendo seu que, doravante, tenha cuidado de forma a não induzir em erro os leitores apropriando-se do que não é seu.]
E Assim Vai o Faial... A doca da Liberdade
No tempo do fascismo, o cais do porto da Horta era uma instituição.
Mesmo depois do 25 de Abril, a doca continuou a ser um traço de união entre os hortenses.
Ao domingo, havia o passeio dito dos tristes, que consolava os alegres. Lá seguiam em romaria os que tinham carro, para o “passeio à doca”, com as esposas no lugar do morto e os filhos no banco de trás.
Paravam os carros lado a lado e ficavam a olhar a cidade como se não fosse a sua. Como se fosse uma pintura ou um casario de outro lugar. Talvez assim a ilha fosse menos ilha e o isolamento menos isolado, com aquele quadro meio distante.
Depois voltavam para a sua casa, que fingiam não ter conseguido identificar na amálgama de telhas, com a mulher a assegurar que é aquela. E até domingo que vem para o parceiro do lado, que ficava mais um bocadinho a ver se a Espalamaca saía…
Aprendi a pescar naquela doca. Senhores e senhoras que ledes estas linhas, este aqui apanhou bogas na sombra da proa do Funchal. Não é para todos. Enquanto lá dentro se contrabandeavam chocolates e relógios, via as bogas virem lá do fundo ao engodo e era só esperar que a isca desaparecesse nas suas bocas.
Muito parasita de boga esmaguei contra a pedra, no tempo em que os parasitas eram quase apenas esses que moravam na boca daqueles peixes, depois escalados e comidos, assegurando minha mãe que era melhor que bacalhau.
Mas também dava chicharrinhos e charro do alto, este último assado envolto em folha de figueira, parecendo coco a sua pele. E carapau que marchava para o estômago com espinha e tudo.
Mas não era só eu a pescar. Eram multidões, algumas delas atravessando a urbe com o caniço às costas e pedindo um carapau a quem já lá estava para fazer isca. Famílias inteiras, graúdos e crianças, lado a lado com o rabo bem assente na pedra. Ricos de caniço aparado, pobres com canas parecendo ter saído de um bardo. Uns para jantarem a murmurar que delícia, outros a roerem as espinhas da sobrevivência.
No redondo, à sombra do farol, dava besugos à noite. E sargos. E bicudas, serras, anchovas, cavalas, dependendo da hora e das marés.
Era outro convívio, a pesca à noite no redondo da doca. No silêncio das gargantas, só os carretos a cantar quando estava a dar muito, nas conversas tricotadas no escuro quando as pontas das canas se mantinham quietas.
Naquele cais cresci e vivi.
Ir à doca, nem que fosse para passear, era sair da ilha, fazer uma excursão a outro lado.
Hoje não se pode ir à doca. É proibido. Um grande portão de ferro deixa os indígenas do lado de cá. São razões de segurança. Normas internacionais.
Mas eu senti-me mais livre, no tempo em que me deixaram ir à minha doca, que era minha e de todos. E senti-me também mais… autónomo, antes da Autonomia.
Post Scriptum (para não se confundir com PS) - Os barcos hoje são menos que antigamente. E mais raros. Porque não abrem o portão de ferro nos (muitos) dias em que se sabe que o cais estará deserto? Depois que o fechassem outra vez, para os que fazem as leis internacionais ficarem todos contentes. Mas seria bom, de vez em quando deixarem-nos cheirar o que é nosso…
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