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quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Do jornalista Souto Gonçalves - Trovoada


TROVOADA

O estado do tempo está nestes dias no centro das nossas atenções, por culpa do Lorenzo, determinado na sua rota.

Até a instabilidade meteorológica verificada hoje surgiu com ares premonitórios, tal como o Pico nos últimos dias, experimentando vários chapéus.

Este domingo amanheceu cinzento e foi-se carregando de humidade, neblina, chuva e finalmente trovoada.

O sofá convidou-me para uma madorna até ao sobressalto do primeiro trovão.

Olhei pela janela estremunhado e os fios de chuva caíam do beiral picando o chão.

Entre o sonho e a realidade comecei a ouvir ao longe... Santa Bárbara se levantou...

Fechei os olhos de novo e deixei-me ir.

Em dias como este as brincadeiras em casa de minha avó eram no corredor ou no quarto de costura. Brinquedos espalhados no chão e arrufos de rapazes pequenos, que às vezes corriam mal, pois dia de chuva é dia de pancada.

Mas o ambiente era aconchegante. A certeza de que a chuva batia na vidraça e não entrava punha-nos à vontade para mais uma manhã ou tarde de peripécias caseiras.

Isto se não fizesse trovões!

Ao primeiro ribombar corríamos para ao pé de minha avó Marquinhas.

Ela mandava fechar as portas de pau nas janelas dos quartos, tapar todos os espelhos e pousava uma toalha por cima da máquina de coser.

Mesmo assim os relâmpagos esgueiravam-se pelas frinchas e o medo tremia-nos na barriga.

Aquele tempo de espera entre o clarão - que iluminava a torre do relógio ali a poucos metros - e o trovão era maior do que a eternidade.

Ouvido ao longe ainda nos dava uma folga para suspirar, mas quando o sentíamos estalar como se estivesse fora da porta o pânico subia até à ponta dos cabelos.

Santa Bárbara se levantou, se vestiu e se calçou...

Não valia a pena espreitar pela janela pois ainda era pior: as nuvens baixas e pesadas, a chuva ensurdecedora e uma escuridão angustiante.

Agora os trovões rolavam sobre o telhado e eram seguidos, prolongados e medonhos!

Santa Bárbara se levantou, se vestiu e se calçou, o seu bordão na mão tomou...

E mais um, estridente, quase ao mesmo tempo do relâmpago.

Sentada no quarto de costura numa cadeira de vimes redonda e larga, como um funil, minha avó parecia uma galinha que acabava de ter pintos.

À sua volta os netos com as pontas dos dedos geladas. Ela acariciava-os com as suas mãos alvas, enrugadas, mas finas e cremosas.

De lenço na cabeça, amarrado por baixo do queixo, xaile sobre os ombros, a sua voz doce subia de tom:

Santa Bárbara se levantou, se vestiu e se calçou, o seu bordão na mão tomou e Jesus encontrou...

Neste momento sentíamos algum alívio, pois a invocação de Jesus, que nos remetia para a Catequese, dava-nos esperança.

E a avó Marquinhas continuava como se estivesse a competir com a tempestade: Santa Bárbara se levantou, se vestiu e se calçou, o seu bordão na mão tomou e Jesus encontrou, que lhe perguntou: onde vais Santa Bárbara? Apagar a trovoada que nos céu anda armada!

Quase sem darmos por isso os trovões já tinham aquele agradável som distante como se fossem a correr para longe sobre as nuvens.

Não levava tempo nenhum e já tínhamos voltado à brincadeira, enquanto minha avó se entretinha a fazer renda.

Na nossa memória ficou uma velhinha um pouco curvada, de saia comprida e bordão que vagueava pelo Céu à espera de quem pedisse a sua ajuda e que certamente era muito amiga da avó.

E o sol chegava a brilhar no mesmo dia da trovoada, o que era bom pois Santa Bárbara assim sempre podia enxugar a roupa depois de uma chuvada tão grande.

Passado todo este tempo fico a pensar se as trovoadas que tenho enfrentado não terão sido afastadas por causa de minha avó, que agora, mais perto de Santa Bárbara, pode pedir-lhe diretamente por mim.
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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